Eu puno, tu punes, ele pune, nós punimos
Desde que nos conhecemos por gente punimos as pessoas. Isso, punimos os outros. É um hábito que já vem de bem antes do que chamamos hoje de direito ou justiça. Suspeito que esse hábito já existisse até mesmo antes da palavra “punir”.
A punição ou vingança privada, na antiguidade, tinha caráter individual, nascia a partir do instinto e era realizada pela própria pessoa que se sentia ofendida, ou por seu grupo. Depois, temos a ideia embrionária de proporcionalidade veiculada pelo Código de Hamurabi.
Ainda na idade antiga, temos a punição divina, desproporcional, cruel e entendida como uma ofensa à divindade e não ao indivíduo. Era aplicada pelos sacerdotes, mas como representantes de Deus.
Com Roma, e depois com a idade moderna, a punição passa a ser pública, com a pena aplicada pelo que está se constituindo como Estado. Aqui temos os suplícios do corpo, e a criatividade posta a serviço da crueldade. É o estado puro de gozo público com a dor alheia. As vezes me pergunto se tal prazer, nem tão secreto assim, ainda sobrevive no tal do cidadão de bem dos dias de hoje.
A partir das revoluções burguesas, do começo da indústria e com a complexidade econômica surge a necessidade de controle de corpos, para produção ou consumo, cada vez mais como pauta institucional. É no equilíbrio entre necessidade e controle desses corpos que os Estados começam a substituir os castigos corporais e as mortes pela prisão. A punição como aprisionamento não tem como objetivo humanizar as atrocidades de antes e nem corrigir os delinquentes, mas sim controlar as pessoas. Os presos como exemplo, os livres como massa. Certa vez escutei um criminólogo falando que o preso é aquele que não serve nem para ser explorado como mão de obra das fábricas. Parece que a cadeia como punição surge assim. Parece que assim continuou. Parece.
Observe caro leitor e cara leitora que quando se descortina o conceito de cárcere, esse é mais um conceito econômico e político do que humanitário, como muitos durante tanto tempo quiseram vender. E vendiam bem: “melhor ser preso que pendurado num poste até morrer”. Parecia uma evolução: “olha como somos civilizados, não mais arrancamos pedaços de pessoas em praça pública”. Mas continuaram arrancando os pedaços, dos corpos e das almas, nos cárceres e nas fábricas. Interessante que diversos autores chamaram esse período de substituição dos castigos corporais pelo cárcere de período humanitário. Pois é. Humanitário. Para quem?
Então, podemos dizer que hoje somos humanitários. Apenas prendemos as pessoas. Em geral aqueles já despossuídos. Prendemos e esquecemos, apagando essas pessoas de nossas memórias individuais e coletivas. Ninguém quer lembrar de sofrimento. Nem ontem e nem hoje.
No espectro político contemporâneo a punição acabou sendo inicialmente capturada pela direita. É a direita, com seu instinto conservador, avessa a mudanças e protegendo patrimônios que vira a grande protagonista do processo de punição. São os seus representantes que defendem uma lei e ordem a partir de uma visão de controle e manutenção das desigualdades, vendendo a paz para a espremida classe média que se acha irmã, quando muito seria a prima distante da vizinha pobre.
É essa pauta conservadora que marca a ampliação constante do direito penal. O direito penal passa a ser cada vez maior, quebrando todos os seus já combalidos limites, para garantir a proteção dos que tem o poder. Também, para passar aos que não tem, mas acham que tem (sim, nossa classe média) a ideia de pertencimento: “Estamos todos no mesmo barco contra esses marginais”. Esses marginais, assim são porque são colocados à margem. Sim, à margam das ofertas estatais.
É nessa toada que a direita brasileira se apresenta. Ordem e progresso. Tradição, família e propriedade. O cidadão de bem. Pois é, ele de novo. Como o intuito nunca foi segurança e justiça para todos, tanto que se apresentam como bancada da bala e não como bancada da segurança pública. E assim vão criando, a cada dia, mais e mais formas de aprisionar. Assim é com a lei de drogas que prende tantos. O tráfico de drogas (ilícitas, pois existem muitas que são lícitas – explicarei em outro texto) está no topo dos motivos que fundamentaram prisões. Ou outras formas, na lei e nos julgados que se esforçam em manter tantos presos. Para proteger a sociedade. Para proteger o cidadão de bem. A tradição, a família e a propriedade.
Eles punem.
Não são apenas eles que punem. A esquerda também tem seu ladinho punitivista, mesmo que escondido em boas intenções. Mas todos nós falantes da língua portuguesa conhecemos aquele ditado que diz que de boas intenções o inferno está cheio. Pois é. Muito cheio.
Nos anos 1990 Maria Lúcia Karam cunhou o termo “esquerda punitiva” para explicar como as forças políticas, que teoricamente deveriam trilhar um caminho de ruptura com o status quo e construir uma sociedade mais justa, acaba cooptada pelo discurso punitivista, muitas vezes justificado por boas intenções.
Quando o político de esquerda justifica punições mais duras aos traficantes ele está esquecendo que o sistema de justiça criminal é essencialmente seletivo, logo por mais duras que sejam as punições só irão se abater sobre os mesmos de sempre. Quando esse mesmo político defende que a corrupção deve ser duramente combatida com punições exemplares e mesmo alguns defendem até relativização de garantias fundamentais, está esquecendo que o direito penal é instrumento de manutenção de poder e não pacificador social. Nesse sentido, a lei penal irá pegar pelo pé apenas aquele que, na luta política, nos embates entre iguais, ficou na pior naquele momento.
Essa lógica é muito observada quando um policial pratica um crime, é flagrado e imediatamente execrado. Nesse momento, parte da esquerda que historicamente apresenta conflitos com a categoria, começa a pleitear duras punições, muitas vezes esquecendo de onde vem aquele agente. Muitas vezes alienado de sua condição. A serviço do próprio sistema que agora o cobra. Ele não é cobrado por ter feito, mas por ter sido flagrado. Aqui, pobre, negro e despossuído. Também.
Nós também punimos. Também dividimos esse mesmo ímpeto de paz social conquistada não por transformações, mas sim por punições. Parece que é mais fácil punir do que transformar as realidades. Parece.
Por fim, deixo aqui uma mea-culpa, quem acompanha meus textos deve ter visto que as vezes falo de punição em um sentido e em outro, algumas vezes até já clamei por ela. Pois é. Lembra das boas intenções de que falei há pouco? Se serve de desculpa, eu estava contando com elas, as boas intenções. Mas, não penso que minha posição seja contraditória, digamos que seja uma condição exploratória. Sei que parece autoindulgência, pode ser que seja mesmo.
É isso, eu puno, tu punes, ele pune, nós punimos. E aí, quem você quer punir?