Bemdito

ICMS: o falso vilão

Alterações do regime do ICMS são insuficientes para resolver o problema do preço dos combustíveis no Brasil
POR Thiago Álvares Feital

Assim como no ano passado, o preço médio dos combustíveis disparou em 2021 e tem batido recordes. Seguindo uma estratégia recorrente na sua cartilha política, Bolsonaro tem afirmado que a culpa pela disparada dos preços é dos outros. No caso, dos estados. De acordo com Bolsonaro, os “vilões” seriam os governadores que aumentaram o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)

No ano passado, o presidente chegou a dizer em tom de desafio: “Eu zero o federal, se eles zerarem o ICMS. Está feito o desafio aqui agora. Eu zero o federal hoje, eles zeram o ICMS. Se topar, eu aceito.” A fala engana duas vezes. 

Em primeiro lugar, porque não se trata de um desafio justo: na esfera federal, a tributação de combustíveis está longe de ser a principal fonte de receitas da União. Sobre combustíveis incidem três contribuições federais — Cide, Pis/Pasep e Cofins — que geraram, em 2019, R$ 27,4 bilhões para a União. Já em relação aos estados, o ICMS sobre combustíveis em 2020 gerou uma receita de R$ 81 bilhões, o que equivale a 20% de toda a receita arrecada pelos estados com o ICMS

Além disso, a premissa do desafio é falsa. O ICMS realmente é um imposto que incide sobre combustíveis. Como qualquer tributo sobre o consumo, um aumento no imposto cobrado sobre as operações de venda de combustíveis seria repassado no preço desta mercadoria e suportado pelos consumidores. Também como em qualquer tributo do gênero, um aumento do preço implica em um aumento do montante de imposto a recolher. No caso do ICMS que incide sobre combustíveis, a questão é um pouco mais complexa, pois esta mercadoria é tributada por meio da chamada substituição tributária

Graças a este mecanismo, os impostos que seriam cobrados a cada operação de compra e venda de combustíveis ao longo da cadeia econômica — desde a refinaria até o posto de gasolina — são pagos de uma vez, pela refinaria, no início da cadeia. Assim, quando a Petrobras — dona de 13 das 17 refinarias em funcionamento no Brasil — vende o combustível para a distribuidora, todo o ICMS incidente sobre as futuras operações de compra e venda daquele combustível já foi recolhido e embutido no preço. 

Mas, como o ICMS está sendo antecipado e as distribuidoras e postos são livres para estabelecer os preços que vão praticar, a refinaria toma como base para recolher o imposto o preço médio ponderado a consumidor final (PMPF). Este valor, que é calculado quinzenalmente, mediante pesquisas realizadas pelos estados e enviadas para o Conselho Nacional de Política Fazendária, busca refletir o preço final cobrado pelos combustíveis.

Apesar de variações no PMPF impactarem no preço pago pelo consumidor final, não é verdade que o ICMS seja a causa do aumento desregrado do preço dos combustíveis. Como já foi apontado, em mais de uma ocasião, não houve qualquer aumento nas alíquotas do imposto desde agosto do ano passado e o PMPF praticado na maioria dos estados reflete adequadamente o preço praticado pelos postos.

A frase de Bolsonaro também leva a crer que os estados poderiam zerar a alíquota do ICMS, o que também é falso. Tanto por questões pragmáticas — não há estado que possa abrir mão destas receitas e continuar de pé — quanto por razões jurídicas: a redução teria de ser compensada de alguma forma, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal — muito possivelmente aumentando o ICMS cobrado sobre outra mercadoria — além disso, para zerar a alíquota do imposto, a Constituição exige a concordância de todos os estados, o que não ocorrerá.

Bolsonaro é uma espécie de antifederalista tropical que assedia os estados frequentemente. No caso dos combustíveis, além de se desviar da responsabilidade — movimento banal na sua coreografia política —, sua investida desloca a pressão política para entes que não são capazes de resolver o problema. Reflexamente, prejudica também os municípios, uma vez que estes recebem 25% do valor arrecadado pelos estados com o ICMS. 

O ICMS está longe de ser um imposto ideal, suas falhas têm sido apontadas e discutidas pela literatura há décadas. Por isso, tramita no Senado uma proposta de emenda à constituição para substituí-lo por um tributo mais adequado. 

É preciso repensar a substituição tributária, que deveria ser um mecanismo excepcional, mas tornou-se a forma padrão de recolhimento do ICMS. Mas nenhuma alteração no ICMS será capaz de solucionar um problema que é relativo à política de preços da Petrobras, que inclusive sinalizou um novo aumento, um dia após o presidente mencionar a necessidade de redução

Neste “jogo de empurra” entre a Petrobras e o presidente os prejudicados são os consumidores. Enquanto isso, a estatal — criada para garantir a soberania nacional na exploração do petróleo — segue distribuindo lucros recordes.

Thiago Álvares Feital

É advogado, professor, doutorando e mestre em direito pela UFMG. Pesquisa tributação, desigualdade, gênero e direitos humanos.