Imaginação e controle
“Da dor de perder, nasce a obra”
(Philippe Brenot, O gênio e a loucura)
Em 2019, antes do estouro da pandemia que nos desapartou bruscamente, um dos meus melhores amigos, o escritor Felipe Cruz, me disse em um bar, com algumas cervejas na cabeça: “Camille, assim como a Sylvia Plath, tu tens todos os atributos da boa escrita: leste muito, tens um grande domínio técnico e formal, muita sensibilidade”. Mas ele acrescentou: “E, como a Plath, pra que essa escrita alcance seu potencial máximo, é preciso que deixes as coisas saírem de controle”. É evidente que somente uma combinação muito particular de álcool e amor poderia produzir um paralelo entre mim e Sylvia Plath, a escritora que mais amo. Não tenho a mais remota pretensão. Mas as palavras sobre escrita e descontrole seguem me inquietando até hoje.
Eu sou controladora. Metódica nos modos, leio e escrevo todos os dias, ainda que em pequena quantidade. Um dia sem estes elementos parece vazio. E, certamente, esta disciplina envolve uma forma de expressão amorosa. Ela também aperfeiçoou meus métodos: passei a escrever melhor e ler com mais qualidade por fazer as duas coisas com frequência. No entanto, há uma quina nesta alegação que foge aos meus desígnios. Por que eu escrevo? Por que eu leio? Por qual motivo passo tanto tempo ruminando obsessivamente sobre o arranjo das palavras em um texto? O que torna a escrita e a literatura algo tão central, a ponto de mobilizar tanto fervor devocional?
Creio que é justo neste nervo que tocam as palavras do Felipe. Eu não precisaria, em tese, nem escrever e nem gostar de literatura. Poderia me conformar com o destino da minha classe, do meu gênero, da minha cor e ser instruída e criativa apenas o suficiente para finalidades instrumentais. Mas algo desandou pelo caminho. Algo na vida me soou espantoso e precisou de mais do que conformidade. Precisou de um gesto criador. Rosa Montero afirma que a imaginação é uma espécie de dama que saiu do controle, “a louca da casa”, nos termos da autora. Diz ela que em algum momento um homem ou uma mulher se sentiram incapazes de admitir a vida tal como era entendida em seu tempo, em sua sociedade e se descobriram em discrepância com o mundo. Montero batiza essa discrepância que os circunda como “os demônios do romancista”. E, para ela, o processo de criação narrativa é a transformação do demônio em tema.
A verdade é que, se eu achasse fácil viver, não escreveria. Escrever é o sintoma de uma perturbação interior. De um estarrecimento, de uma falta de costume com a realidade. Todo percurso imaginativo nasce desse estranhamento. Mas, ainda assim, eu vivo tentando domar essa ânsia faminta e exigente que me acomete em um comando por expressão. Escrevo contos que engaveto. Anoto poemas que perco em folhas avulsas. Censuro as partes que penso poderem ser mais incômodas das minhas palavras, as com potencial de produzir escândalo. Quanto mais furioso é o ímpeto locucional, mais severo tende a ser meu gesto de contenção. É algo que me deixa parcialmente desnorteada e errante. Sem nunca soltar completamente os portões da cerca, desconheço até onde posso ir. Fico alheia ao tipo de coisa que sou capaz de produzir. Nego esta possibilidade tanto para mim, quanto para quem eventualmente possa gostar ou odiar o que escrevo.
É evidente que eu exerço este controle muito mal. Coisas reprimidas tendem a se tornar indóceis, gostam de se rebelar. Com o tempo, a literatura começa a vazar como o miolo de um brinquedo de pano mal costurado. Aparece sem pedir licença nos meus textos acadêmicos. Surge citada sem contexto na minha conversa cotidiana. Se insinua na forma de um livro que me atrai, sem que ele tenha conexão com meu trabalho. Martela minha mente quando eu fecho os olhos no banho, ou antes de dormir. Quanto mais eu a nego, mais desassossegada ela me deixa. E chega a um ponto em que não faço mais um único movimento sem que ela se faça presente. Coisas reprimidas têm essa estranha propriedade, a de começarem a te assombrar, até você olhar para elas.
Sinto que Felipe falou com o tipo de sabedoria que só uma pessoa talentosa — e ele é muito talentoso — e capaz de amar poderia falar. Não se domestica uma entrega. Quando se tenta, e eu vivo tentando, o resultado é paralisante. E uma hora tudo volta, mais desgovernado que nunca.
Não posso prever em que ponto chegarei em termos de escrita nesta queda de braço com minha imaginação. Mas sei que, embora possa provocar dano, a instância controlada de mim sairá perdedora. Sei também que a imaginação é um organismo mais forte, senão não teria sobrevivido aos meus contínuos maus tratos. Como a Lady Lazarus de Plath, a imaginação no mundo ainda se levanta, saída das cinzas. Talvez precisemos aprender a deixar de temer aquilo que ela pode.