Bemdito

Liberdade, abre tuas asas sobre nós

Como o esvaziamento e a torção cínica das palavras ameaçam a liberdade
POR Carolina Mousquer Lima
Detalhe do quadro "A moura", de Dario Villares Barbosa

A palavra é o que nos salva da barbárie. Sobre o seu valor civilizante há uma passagem famosa na obra de Freud: “(…) o primeiro homem a desfechar contra seu inimigo um insulto, em vez de uma lança, foi o fundador da civilização”. Dói testemunhar que a palavra murcha, míngua, se esvazia em nosso país. Quem tem nela sua única ferramenta de trabalho, sente-se impelido a denunciar o maltrato ao qual ela vem sendo submetida. Arrisco dizer que fizeram da palavra pano de chão – de linho nobre e pura seda – para lembrar Renato Russo, que conhecia muito bem sua força.

Palavras são tesouros. E merecem respeito. O linho nobre e a pura seda são, justamente, sua polissemia – a multiplicidade de sentidos que deixa espaço para o surgimento de algo novo – e sua capacidade de produzir laços entre as pessoas. Quando a fala parte do lugar da certeza e não gera nenhuma surpresa é porque a palavra não está cumprindo sua função mais nobre – trata-se de uma fala vazia. Aprendemos com Lacan que um bom uso da palavra só se faz no endereçamento a alguém – desejar que o outro nos escute – e por encontrar – no outro – alguém que terá desejo de escutar.

Por isso as mães dizem, com razão, que o bebê está conversando. Ainda que não consigam articular as palavras, percebemos que há na vocalização deles uma intenção de se dirigir ao outro, como quem faz um convite. Podemos distinguir perguntas e exclamações a partir da entonação, do tom. E isso só acontece porque alguém foi dando palavras ao que era, no princípio, pura descarga pulsional. Um bebê só entra na linguagem e descobre as palavras porque um adulto leu a letra do seu choro. Respondeu ao choro: “o que tu quer?” e fez uma leitura: “é fome”, “é sono”, “é dor”. É assim que se forma um circuito entre os dois, mediado pela linguagem, e que o grunhido vira palavra. Como disse Lacan, uma palavra só é palavra na medida exata em que alguém acredita nela. Por isso a palavra é o que faz elo.

O que vemos acontecer hoje no Brasil é o oposto disso. É como assistir nas ruas o teatro do absurdo. No livro O Discurso da Estupidez, o psicanalista Mauro Dias discorre a respeito das vociferações que recusam toda possibilidade de diálogo. Para tanto, ele retoma uma indicação literária muito preciosa: a peça O Rinoceronte, de Eugêne Ionesco.

Em uma cidade comum, em um dia qualquer, aparece um rinoceronte. Isso causa certo espanto, mas as pessoas seguem com suas vidas. Até começarem a perceber que são as pessoas da cidade que estão se metamorfoseando em rinocerontes. Enquanto são minoria, o clima é de incredulidade. Uns acham que é delírio, outros estão ocupados demais para saber o que acontece. Aos poucos as pessoas vão perdendo a humanidade e transformando-se em rinocerontes. E quando as feras já são maioria, os humanos, minoria, começam a se perguntar se, afinal, o normal é ser humano ou ser rinoceronte ou, até mesmo, se transmutar-se de humano a rinoceronte não seria uma evolução. Resta, ao final, um único homem, que não se rende à transmutação, mas que não tem com quem falar. A peça faz alusão aos regimes totalitários e, ao final, nos deixa com a pergunta: seria a solidão o preço a pagar pela lucidez?

Inimigos da palavra
Todos os regimes totalitários souberam esvaziar as palavras. Quando as palavras são repetidas à exaustão vão sendo reduzidas a grunhidos e esvaziadas de sentido – deixam de produzir diálogo. Viram palavras-fetiche. Paulatinamente vão dessensibilizando quem as profere. Na sequência, vazias e sem força, são capturadas pelo discurso estúpido e cínico – que dará a elas um novo sentido, normalmente o oposto do sentido originalmente compartilhado. No dia 7 de Setembro, assistimos à tentativa de capturar a mais linda das palavras: liberdade. Tão linda que merece ser escandida, apreciada em cada sílaba: li-ber-da-de.

Faz tempo que a retórica bolsonarista vem tentando emplacar o uso da liberdade de expressão de forma distorcida, a fim de justificar ameaças totalitaristas. Para Freud a liberdade individual não é um bem cultural. Ao contrário. Nós a sacrificamos em nome da civilização, da possibilidade de viver em uma comunidade. É por isso que, por exemplo, não saímos pela rua, muito menos aos palanques, a dizer tudo que nos vem à cabeça.

O único lugar onde isso é permitido é no divã. Ainda assim, não de qualquer jeito. Freud entendia que esse sacrifício da liberdade individual era o que nos fazia adoecer, pois criamos um excesso de defesa contra nossos impulsos e desejos mais impublicáveis. Ele percebeu que nós os sacrificamos, de forma necessária, em prol de um bem comum e que isso gera mal estar, pois os desejos não deixam de existir. Eles seguem insistindo em mostrar-se de alguma forma – nos sonhos, atos falhos. E, quanto mais tentamos sufocá-los, mais adoecemos. Foi por isso que Freud propôs que a cura passaria pela palavra, com o método da associação-livre. Falar o mais livremente possível sobre as nossas dores, para alguém que deseja escutá-las, dentro de um determinado enquadre feito para isso. A Psicanálise nasce como uma proposta disruptiva.

Palavra e liberdade
Ao liberar a palavra, libera-se o sujeito. Mas a liberdade de que falo aqui não se confunde, jamais, com esse sentido cínico, de que somos livres para dizer ou fazer qualquer coisa sem responder pelo que foi dito. A liberdade que a psicanálise propõe significa, ao contrário, a possibilidade de relacionar-se com o mundo e com as pessoas no sentido mais genuíno da alteridade. Significa liberar a si e aos outros daquilo que, na nossa fantasia, o outro espera de nós. Sentir, no corpo, que ali onde supomos que nos demandam muitas coisas não há muito mais que silêncio. Ou, dito de outro modo, encontrar um estilo de estar no mundo que, liberado de padrões, possibilita que nosso desejo tenha lugar, sempre com os outros, nunca sem eles. Para essa leitura da proposta freudiana, Lacan foi fundamental e fez uma nova disrupção. E é por isso que a psicanálise é incompatível com qualquer forma de de mau uso da palavra.

E, para repensar o sentido da palavra liberdade, vale lembrar que estamos próximos do 20 de setembro – data em que se comemora uma guerra do Rio Grande do Sul. Canta-se essa guerra no nosso hino dizendo que ela foi “precursora da liberdade”, fazendo referência a um tempo em que o RS separou-se do Império brasileiro, tornando-se a República Rio-Grandense.

Pois esse é justamente o tipo de liberdade que interessa a quem? Uma liberdade sem os outros. Sem o norte e o nordeste. E, principalmente, sem os negros – a quem os gaúchos, durante a guerra, primeiro prometeram liberdade e depois emboscaram e mataram na Batalha de Porongos. Essa liberdade deturpada do hino não nos interessa mais.

Por isso, a única coisa que nós, gaúchos, temos para comemorar no dia 20 de setembro é o fato de que o Brasil nos quis de volta. O Brasil de quem não se assusta com o diferente. Que não reprime no outro aquilo que causa espanto em si mesmo. O Brasil que canta outra liberdade, a que abre as asas sobre nós para que a voz da igualdade seja sempre a nossa voz. O Brasil que faz um convite irrecusável: “Vem viver o sonho que sonhei”. Brasil que fala muitos portugueses, sem esquecer que é filho de índios e que, antes de tudo, aprendeu a falar tupi-guarani com uma mãe índia. O Brasil cheio de cores, de todos os sotaques e de muitos sabores. Do aipim que também é macaxeira. Da bergamota que também é mexerica.

A liberdade que a psicanálise propõe requer que nos façamos responsáveis pela disrupção que ser livre provoca. Depois que nos desalienamos da nossa história, o caminho é sem volta. Seja da nossa história familiar privada, seja da nossa história comum. Com as políticas de inclusão, as perguntas dos negros, índios e LGBTQIA+ começaram a ser ouvidas. Essas perguntas foram postas no discurso. E tudo indica que questionar a narrativa branca, até então tida como a única verdadeira, teve efeito de trauma no nosso país. E trouxe, à tona, outros traumas que estavam sufocados, guardados nos porões da ditadura e nos navios negreiros. A ferida narcísica causada por essas e outras perguntas – que abalam o pacto da branquitude brasileira – foi aberta. E é o tipo de ferida que só cura de dentro pra fora. Se tapar, ela apodrece.

Perguntas que abalam
Será que o esvaziamento e a torção cínica da palavra são efeitos disso, reações defensivas a esse trauma? Como se estivéssemos produzindo um sintoma de dessensibilização às palavras para não ouvir as perguntas que abalam o que, até então, entendíamos ser a nossa história? Podemos chamar de nossa uma história que conta apenas a narrativa branca dos fatos? Esse abalo narcísico nos deixa sem palavras e não suportamos estar em silêncio?

As palavras, por vezes, nos faltam. Em alguns momentos é como se elas não fossem suficientes para transmitir uma experiência. Não sabemos o que dizer. O luto é um desses momentos em que a nossa presença se faz mais importante que qualquer palavra. Por isso fazemos um minuto de silêncio. Respeitar as palavras passa por reconhecer que elas podem faltar e por suportar o silêncio. Conseguir estar em silêncio é, justamente, a única forma de encontrar a palavra justa, e não deixar que essa palavra justa se perca na falação da palavra vazia. É quando elas nos faltam que algo novo pode surgir.

Lacan costumava interromper as sessões quando o paciente dizia algo muito importante. Justamente para que o paciente não tivesse tempo de recobrir o silêncio causado pela surpresa com um falatório vazio. Operou-se um corte na narrativa branca heterossexual. A história não será mais contada como antes. Pra quem se sente angustiado com isso, seria recomendado um pouco de silêncio, como um tempo de elaboração.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.