Manifesto do café sem discurso
Um amigo querido frequentava o café da praça Generoso Marques. Em cada cidade deve haver um exemplar assim.
O único café charmoso de Curitiba, ou pelo menos o único café que não tentava esconder a cidade por trás de suas paredes, pensadas, previamente definidas.
Naquelas mesas estava tudo exposto escancarado. Os sírios sentavam na mesma mesa todo dia às seis da tarde. As prostitutas transitavam por perto, os estudantes liam seus livros e até os orelhões teimavam em existir.
Estávamos em estado de mistura e ninguém parecia se incomodar com o fato de que uma cidade verdadeiramente existisse assim, tão sórdida e bela, enquanto Nasser, o libanês, nos atendia com um cigarro na mão e um isqueiro de prontidão.
Antes que me julguem, não, não sou saudosista. Eu gosto mesmo é de semiótica.
Paulo dizia que se proliferavam pela cidade os cafés com discurso. Por trás de tudo, havia um conceito, uma especificidade, nenhum detalhe kitsch. Mesmo quando havia um baleiro, o baleiro era parte de um conceito vintage. Ele não poderia estar ali, existindo como baleiro, com barulho de baleiro e cheio de balas de tamarindo sem estar integrado a uma significância maior, rodeado de gente que se veste em consonância. A cidade não é tão grande e, afinal, não é o mundo que é pequeno, senão a renda mal distribuída.
Eu até gostaria de acreditar no acaso e na filosofia da diferença, mas assim como está, impossível.
Paulo e eu tomávamos café todo dia às cinco. Menos pelo café do que pela vista da praça, pelo todo do que ali orbitava. Isso foi em meados de 2012, não faz tanto tempo. Não é sobre o romantismo dos antigos, mas acho que foi antes do surgimento do Instagram e da proliferação do The coffee a cada esquina, o desejo de ser Tokyo como réplica da China. Um café sempre igual a si mesmo, passagem apressada para uma outra coisa, o oposto da enorme varanda onde a tarde repousou em mim.
Paulo já não está entre os vivos. Foi morrer em Buenos Aires porque os cafés de lá eram mais autênticos e nem os garçons faziam questão de dissimular. Ele não gostava de ser o cliente querido de ninguém. Nada de prontidão de ou bajulação: um café precisa existir em si mesmo como uma espécie de entidade viva, sem se revestir de agrados. Acho que é coisa dos portenhos, embora Nasser, o árabe, também fosse assim. Se todos pensassem como ele, o mundo não seria um pastiche de Instagram. Danem-se os algoritmos, aqui gostamos do cheiro da cidade.
Paulo está em cinzas, mas se não estivesse, diria que os cafés vitrine com tijolinhos à mostra, cimento queimado e samambaias no teto estão virando a regra. Parece que o mundo anda descampado num imenso latifúndio de igualdade.
Se um cara me chamasse para um café desses, eu diria que é um homem qualquer. Um cara, apenas. Un Pobrecito. Fez doutorado em sociologia e fala tanto, sem entender de nada do que verdadeiramente importa.
Imagino que Paulo poderia dizer que estou fetichizando a decadência e por isso acho a Saldanha Marinho a rua mais bonita da cidade. Mas não é bem assim. O que me irrita é que tudo vire produto e por detrás de cada produto exista uma coerência combinatória que beira o insuportável.
O que eu desejo é encontrar um baleiro que seja apenas um baleiro. Um prato feio que seja apenas um prato. Algo tão inusitado e aleatório quanto a existência de um prato. Entende?
Se tudo o que eu falasse viesse carregado de segundas intenções e de uma voz modulada por trás, nunca teria dito uma besteira que valesse a pena. Acho que sequer me suportaria.
Paulo gostava do Barthes porque era um sujeito fino. E o Barthes tinha o conceito genial de Punctum, aquilo que, no detalhe e na desprevenção, aciona o desejo, uma certa forma de gesticular, um sotaque distinto em terras estrangeiras ou uma profunda sensibilidade com as plantas. Coisa miúda, que torna o objeto amável uma coisa ou criatura única, inigualável dentre todas as coisas e criaturas do mundo.
A padronização estética anula o desejo. Pelo menos o desejo de fazer da ida ao café uma possibilidade de estar a serviço de coisa nenhuma.
O café da Generoso Marques foi o último reduto de desobediência civil. Só não tinha carteado às três horas da tarde porque aí beiraria à indecência e eu mesma jogaria junto.
Cafés sem discurso nos deixam à vontade para os grandes nadas à paisana. Foi assim ao acaso que caí de amores uma, duas, três vezes. O ócio é a armadilha do desejo e nunca me canso de cair. Às vezes me faço de tonta e caio até de propósito.
Uma vez o Paulo disse que eu tinha uma abertura imensa para a vida. Era ali que ele queria morar.
Outro dia era verão em pleno agosto. Um acontecimento raro merece uma cerveja em esquecimento ao fato de que nessa cidade gestamos nove meses de inverno para uma réstia miserável de sol.
Reparo que a Mateus Leme anda se refazendo, sinto o cheiro da especulação. Por ali novos bares, todos meio iguais. Paro em uma esquina na subida para o Gaúcho e para o meu encanto estou só em um estabelecimento de duas mesas.
Me servem um hambúrguer em prato de avó, a coca cola no copo americano, o design mais genuíno do mundo. O hungry lanches foi uma empreitada mal sucedida de americanização, mas tinha a sua graça: a tentativa falha, uma espécie de gaguejar.
E pela agradável modéstia do estabelecimento, indiquei aos amigos. A comida é barata, não há rastro de semi conhecidos, posso comer meu hambúrguer sem que a atenção dos olhos se sobreponha ao sabor da carne.
Desejo que o hungry lanches prospere sem se tornar popular. Não sei se sou arrogante, mas acho que o falecido Paulo entenderia. A lanchonete me agrada porque desejo ser ninguém em um lugar que seja coisa nenhuma. Eu sem batom em um lugar sem pinturas. O que gosto mesmo é do mistério.