Bemdito

Meu escritório é na praia

Modalidade esportiva que ganhou força durante a pandemia, o nado livre tem gerado empregos e movimentado as manhãs na beira-mar de Fortaleza
POR Paulo Carvalho
Nado livre na Beira-Mar de Fortaleza (Foto: Paulo Carvalho)

Fortaleza, como a tal cidade na qual se mora onde outros passam férias, tem na praia mais do que um cartão-postal e lugar de convívio social, mas também um ambiente economicamente ativo onde se entrelaçam inúmeras relações de trabalho. A construção da “nova Beira-Mar”, entre elogios, críticas e polêmicas, provocou um rearranjo na vida de muitos que trabalham com o pé na areia. É um retrato do quanto temas como espaço urbano, relações de trabalho e  comportamentos podem se conectar.  

Como o mês de setembro foi inaugurado com o Dia do Profissional da Educação Física, trago eles como um exemplo concreto para a nossa conversa.     

O Brasil é um país que se exercita pouco. Conforme estudo divulgado em janeiro de 2021 pela Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se que, nos últimos 15 anos, praticamente um em cada dois brasileiros adultos não faz atividades físicas suficientemente. Um passeio pela beira-mar de Fortaleza, nas primeiras horas da manhã, parece uma bolha que contrasta essa pesquisa. Grupos de corrida, ciclistas, funcionais, esportes na areia atestam o que o Instagram mostra como “tá pago”.  Esse é um cenário onde diversos educadores físicos se organizam para exercer os seus trabalhos através de escolas de variadas modalidades esportivas que ocupam a orla. 

A revitalização do espaço tem repercutido em novos hábitos para quem o utiliza. Uma modalidade em especial tem chamado atenção entre os empreendimentos esportivos que surgiram ou aumentaram durante a pandemia. A balneabilidade da região proporcionou uma nova cultura de exercício físico na Beira-Mar, a natação em águas abertas.

Quando o sol assina seus primeiros raios no mar, os alunos de nado livre da Praia do Náutico começam a chegar, com seus óculos e toucas de natação, recebidos por assessorias especializadas que montam suas tendas e delimitam o espaço da sua sala de aula de areia e água salgada. Interessado em questões que envolvam o mundo do trabalho, fui conversar com os responsáveis por essas escolas, como um protótipo recente de micro cadeias produtivas que vão se consolidando com a reforma da orla e trazendo novos hábitos para a cidade. 

Nadar na pandemia
Antes da pandemia, essas escolas não eram tão presentes. Um nome pioneiro no setor foi o de Sâmmia Santiago que, desde 2012, aliou sua experiência como atleta em águas abertas com uma procura gradativa de público interessado em aulas de natação no mar. Com a pandemia, a procura por essa prática esportiva aumentou consideravelmente, na aposta por exercícios ao ar livre em contraponto às academias fechadas. Hoje já se pode perceber a primeira geração de escolas de assessoria em nado de águas abertas em Fortaleza. É o caso da 4Swim, FD Águas Abertas, Greyce, K2 Assessoria Desportiva, RB Team, Sharks, Swim Movement, Sâmmia Santiago e Vem pro mar.

A pandemia nos confrontou com os riscos do sedentarismo para a saúde, justifica Roberto Brasil, triatleta e campeão mundial de Aquatlon. Flávio Delamônica, ex-integrante da seleção brasileira de natação e profissional de Educação Física, passou a atuar como professor de natação na Beira-Mar por uma demanda espontânea de alunos que tiveram as piscinas dos condomínios fechadas nesse período. Ele confirma que essas escolas são legados da pandemia e demonstram uma nova tendência de assessoria esportiva na cidade. 

As escolas foram chegando espontaneamente na orla e hoje formam um setor que já demanda organização de atuação pela Prefeitura de Fortaleza. Assim, estão incluídas no novo ordenamento das atividades econômicas na Beira-Mar, realizado pela Secretaria Regional II, com base no Código da Cidade (Lei Complementar Municipal nº 270/2019).

Segundo a Prefeitura, atualmente existem doze iniciativas cadastradas, sendo cinco apenas de atividades na água e sete de triathlon (que engloba a natação). Para este grupo, é exigido que o profissional tenha realizado curso de salvamento por órgão devidamente licenciado. Assim como as demais atividades, como forma de apoiar os pequenos empreendimentos do local, a Prefeitura condiciona a liberação de termos de permissão para uso do espaço à obrigatoriedade de os permissionários participarem de capacitação gratuita sobre empreendedorismo, realizada pela Secretaria do Desenvolvimento Econômico (SDE). 

Sempre há conflitos
O Rio de Janeiro, que tem uma cultura mais antiga dessa prática na orla, já testemunhou alguns conflitos no exercício profissional na praia, que envolvem desde o ponto de atuação de cada escola até a qualificação técnica dos professores. Algo parecido com o que as assessorias de corrida já passaram por aqui.

A Constituição Federal garante que é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, mas em um estado democrático nenhum direito é absoluto. O tema provoca o interesse do Conselho Federal de Educação Física, responsável pela fiscalização para que as atividades esportivas sejam orientadas por profissionais capacitados, permitindo denúncias dos casos que violem essas regras. No Ceará, o Conselho Regional de Educação Física (Cref-5) apresenta-se como garantidor da sociedade ser atendida na área de atividades físicas e esportivas por profissionais de educação física registrados e habilitados. 

Perfil do público
O público que frequenta essas aulas de natação é diverso, desde os que pretendem vencer a fobia pela água até aqueles que buscam competir em campeonatos esportivos. Exemplos marcantes sobre a experiência dos alunos com o mar não faltaram nas conversas, o que confirma o valor de um trabalho que se coloca como mediação do homem com a natureza, através do esporte.

A adesão dos alunos à prática gerou um movimento de empatia com as escolas durante o período em que elas tiveram que fechar no lockdown. Após algumas tentativas frustradas de adaptação das aulas para as ondas da internet, Sammya disse que grande parte dos alunos permaneceu pagando as mensalidades, mesmo sem aula, reconhecendo que era um empreendimento que dependia do uso do espaço público para funcionar. Roberto, no entanto, queixa-se de uma minoria que ainda julga a profissão do professor de natação na praia como um “trabalho menor”, como se não fosse claro que o que é lazer para um lado, é trabalho para o outro. 

Todos os professores de educação física desempenham um papel relevante de prevenção primária, secundária e terciária do sistema público de saúde ao promoverem prática de atividade física e bem-estar. Uso esse exemplo recente dessa primeira geração de profissionais de educação física em águas abertas de Fortaleza para comprovar como a  apropriação decorrente de investimento em espaço público repercute não só na cultura local mas no entrelaçamento das relações de trabalho. O aumento pela procura de esportes náuticos gradativamente foi criando uma rede de desenvolvimento de pequenos negócios informais nos arredores, como aluguel de equipamentos, vendedores e aquilo que se costuma qualificar como nanoeconomia de mercados informais. 

Na saída de minha conversa com os professores, tomei uma água de coco em uma das barracas existentes por lá. No “Côco do Márcio”, fui atendido pelo Douglas, que trabalha com o pai desde os dezesseis anos.  “Eu me considero um microempresário”, ele me disse ao falar do seu trabalho. Em seguida, complementou : “mas continuo estudando, para melhorar de vida”, conclui enquanto fornece a um cliente o número do PIX para transferência do valor do produto. 

Aqui no Bemdito escrevo quinzenalmente sobre o mundo do trabalho. Mais do que pensar o trabalho na abstração, gosto de vê-lo enquanto expressão cotidiana e concreta das nossas relações. “Meu escritório é na praia, como diz a música”, comentou um dos professores sobre seu trabalho em nossa conversa. Ao ver os alunos na praia, lembrei do trecho de uma poesia de Maraíza Lacanca que diz “Essa falsa ideia que o mar nos dá de que é a gente que entra nele”. As aspas falam do mar. Se trocarmos o mar pelo trabalho, funciona também.

Paulo Carvalho

Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa, coordena o grupo de pesquisa Labuta e é professor de Direito e Processo do Trabalho.