Mural de recados
Com o que você se ocupava no recreio antes dos catorze anos? Quando penso nisso, vinte anos depois, sinto que nem tudo mudou de lá pra cá. É como se minhas ações e meu comportamento dentro da escola, durante o bendito intervalo entre as aulas, de certa forma assinalassem hoje muitas das condutas que adoto na vida.
Havia um refúgio quase secreto no colégio de freiras onde estudei no decorrer da infância. Pouca gente frequentava a salinha cuja porta de entrada, pequena e de madeira escura, mal se deixava notar pelos passantes alvoroçados. Pensando com as dimensões do corpo que tenho hoje, constato que aquele vão talvez não tivesse 20 metros quadrados, mas a verdade é que mundos infinitamente maiores couberam ali dentro. Tratava-se da humilde biblioteca, silenciosa e esquecida por boa parte daqueles que habitavam o colégio.
Eu já tinha intimidade com os livros, seres que ocupavam desde sempre inúmeras prateleiras e estantes de ferro na casa de meus pais. Gostava de estar na presença deles, que me desafiavam. Ao longo de suas páginas, vasculhava indícios de outras terras e gentes. Portanto, costumava reservar algum momento do tão festejado recreio para adentrar a biblioteca e sentir-me em casa. Lá eu podia me camuflar, passear por outras paisagens e descolar-me da agitação feroz que corria sem rédeas do lado de fora.
Quando soava o sino que indicava o final do primeiro bloco de aulas e o início do recreio, a gritaria era imediata. Não sei se já ouvi manifestação sonora tão selvagem de alegria como a das crianças nesse exato instante. Então, eu me transformava em duas, que contrastavam entre si: uma tagarela que adorava se juntar às demais crianças, urrar e suar sob o sol das dez da manhã; outra genuinamente tímida que preferia um recanto às sombras para mergulhar na solidão das letras, relaxar as pernas e acionar o imaginário.
Foi graças à atmosfera de tranquilidade intacta a rondar a biblioteca que surgiram meus primeiros textos e outras travessuras. Escrevia de início para narrar situações que não ocorriam comigo, cenas que desejava viver, mas de fato não chegava perto de realizar porque, dentre outras coisas, me faltava audácia. Criava personagens parecidas comigo, um tanto mais seguras e com pernas menos finas. Elas por vezes escapavam do cenário escasso do sertão e viajavam para as montanhas, as praias ou a cidade grande.
Nessas histórias, as protagonistas eram notadas por algum rapaz gentil – curiosamente, uma versão melhorada do menino mais interessante do colégio com traços do cantor da boy band favorita – e ele finalmente as convidava para um passeio de bicicleta. Não me atrevia a ler os textos em voz alta, mas com frequência emprestava o caderno de espiral surrado às amigas, que se divertiam com a leitura.
Travessuras com escrita, desenho e imaginação
Foi também dentro da biblioteca onde me veio a ideia brilhante de contribuir religiosamente com o Mural de Recados, uma seção do jornalzinho bimestral que a equipe de comunicação do colégio começara a publicar. Fui me dedicando a inventar caligrafias distintas da minha e a enviar recados assinados por outros nomes. Percebi que a escrita era irmã do desenho e, aproveitando-me do gosto pelas linhas, passei a produzir diferentes tipos de letras.
Como transitava bem pelas várias galeras da turma e desenvolvia com prazer a prática da escuta, acompanhava as fofocas e sabia quem gostava de quem, boatos de afetos nutridos e não correspondidos.
Assim, ia me inspirando na elaboração dos recados cada vez mais despudorados. Esses eram remetidos por criaturas discretas e endereçados àqueles e àquelas que mal paravam quietos e, por isso, não suspeitavam de que poderiam ser objeto de admiração de alguém.
Eu, que me considerava destra, aprendi inclusive a escrever com a mão esquerda e também de cabeça para baixo, com a direita. A cada modo diferente de agarrar o lápis, uma caligrafia nova nascia, com formas arredondadas ou compridas, rebuscadas ou garatujadas, a depender do nível da habilidade. Em todo recreio, três novos bilhetinhos eram somados à urna, que passava a maior parte do tempo entregue às moscas.
Ao final das avaliações, exemplares do jornalzinho eram entregues aos estudantes por assistentes da secretaria e estagiários. Eu fazia questão de concluir rapidamente as avaliações para poder assistir pelo rabo do olho à confusão que se instalava nos corredores e ganhava volume em direção à sala da coordenação. Filas de meninas e meninos descabelados, fardados de azul e branco, professores incrédulos, funcionários da administração, técnicos, zeladores e demais empregados da escola passavam os olhos com espanto pela página de recados.
Por dentro, uma vontade incontrolável de rir me consumia. Durante anos seguidos, fui a única responsável pela balbúrdia que tomava de conta do tradicional colégio de freiras, no último dia dos exames bimestrais. Disso, minhas colegas não souberam, mas agora conto abertamente a vocês com uma espécie de orgulho.