O coração das pessoas é maior que os manicômios
Entre as relações de poder e as bordas sociais, morais e psicológicas da sanidade
Camille Castelo Branco
camillecastelobranco@gmail.com
Nesta semana, dia 18 de maio, marcou-se simbolicamente no Brasil o dia da Luta Antimanicomial, um movimento político mobilizador de diversos agentes que, por meio de suas articulações, conquistaram em 2001 a promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica (Lei 10.216), um mecanismo jurídico que introduziu importantes mudanças nas bases de assistência em saúde mental no país e que, desde a ascensão do governo Michel Temer, vem sofrendo com ameaças de desmonte.
Pensando sobre o assunto ao longo desta semana, ocorreu-me que os mais de 10 anos realizando formação em Antropologia e exercendo, portanto, aquilo que chamamos de alteridades radicais, ensinaram-me uma ou duas lições sobre humildade existencial. Graças à Antropologia, aprendi que, em inúmeras sociedades, o louco não é violentamente arrancado da vida social. Ele continua integrado a sua comunidade, conversa com as pessoas. Toma parte no cotidiano à sua maneira.
Em algumas formas de organização social, o louco é mesmo considerado sagrado, uma vez que é capaz de observar o mundo a partir de lentes que os limites da sanidade não são capazes de alcançar. Não é como fizemos no Ocidente. Nós trancafiamos os loucos, e os submetemos a eletrochoques, entupindo-os de fármacos. Amarramos seus braços. E esterilizamos seus corpos, para que não repassem a sua condição para a geração seguinte.
Foucault foi o autor a fornecer as bases mais canônicas para pensarmos o hospício e a loucura no Ocidente. Por meio de seu legado conceitual, compreendemos que a função do manicômio não é a de tratar, tampouco a de curar: instituição total, o espaço asilar procura disciplinar, normalizar e, quando necessário, punir violentamente. Foucault, que em vida foi internado, também ensina que a própria distinção entre normalidade e anormalidade, sanidade e loucura, possui história: serão considerados loucos todos os dissidentes, os desobedientes, os rebelados em relação aos mecanismos de regulação da vida em cada tempo.
A loucura é, ao mesmo tempo, uma palavra vazia e transbordante. Multidões inteiras já couberam dentro dela e sofreram as consequências disto. De que serve, hoje em dia, um louco? Uma pessoa voltada para dentro de si, que não pode ser instrumentalizada como mão de obra explorada dentro do capitalismo, que não toma parte no fetichismo do consumo? E se todos em volta decidirem imitá-lo? No louco mora a ameaça de uma revolução? Melhor contê-lo.
A escritora Maura Lopes Cançado, em seus diários de interna, escreveu que “o hospício é Deus”: ele se apresenta como uma força avassaladora e inevitável se abatendo sobre sua existência. No hospício, ela escreve, todos os dias o seu coração é removido do corpo, para depois ser devolvido, trêmulo, exangue e sempre outro. Como Deus, o hospício possui longas mãos que a conduzem não se sabe para onde, nem de que forma. E ela teme, no percurso, perder-se de si mesma. Porque é isto que a lógica manicomial produz: a dissolução das pessoas.
Porém, de dentro dos manicômios, há subversão e resistência. Há psiquiatras, como Nise da Silveira, que um dia decidiu entregar aos loucos do hospital psiquiátrico, no bairro do Engenho de Dentro, um espaço contendo tinta e papel. O resultado: profundos atos comunicacionais criados pelas mãos dos internos e hoje expostos no Museu de Imagens do Inconsciente, obras que interpelam seus observadores a reconhecerem na loucura o estatuto de uma linguagem. Há poetas, como a portuguesa Cláudia R. Sampaio, que, internada por longos períodos, escreveu contando a história. Em um de seus versos, ela desafia: “Olhem bem para mim:/ Sou um Jesus pregado a químicos,/ uma falha anónima erecta/ nas tábuas/ O meu nome é Milagre”.
Há muito que vivemos em um contexto que não realiza apenas a gestão do sofrimento psíquico – ele também o produz. Se a existência passa a ser fraturada por formas radicais de violência e desigualdade – racismo, colonialismo, heteronormatividade, misoginia, pobreza –, é evidente que a experiência do sofrimento deixou de ser individual. Ela se tornou o espírito do tempo. Isto é coisa que teóricos como Frantz Fanon constataram em clássicos como Os condenados da terra: exercendo a clínica durante a guerra colonial argelina, Fanon escreveu que desigualdade social gera perturbação mental. E que não é possível almejar saúde mental de forma ampla sem se engajar em projetos de transformação radical do mundo.
O manicômio não é apenas um prédio. Ele arrombou os muros das instituições e afirmou-se como lógica transversal à dicção de nossas palavras. O manicômio se afirma a cada vez que a psiquiatria é utilizada como saber-poder para a realização de higiene social. O manicômio se fortalece quando cada pequena e singular face do sofrimento humano é catalogada no Código Internacional da Doença (CID) e recebe medicação correspondente. O manicômio se intensifica a cada vez que uma pessoa com doença mental é tratada como inválida, destituída de sua voz e tutelada em suas possibilidades de autodeterminação.
Uma psicose é como um idioma estrangeiro: não é porque você não a compreende que ela não possui nexo, sentido, relações de causalidade. Como é próprio do aprendizado de outro idioma, a loucura também demanda tempo, paciência e sensibilidade em torno de sua compreensão. Uma vez realizada a travessia, algo novo, desconhecido, expandido de sentido pode acabar se apresentando. Um novo léxico sobre todas as paixões humanas abissais: a raiva, o ciúme, o desejo, a culpa, a fé. Por que nos apressamos em calar esta modalidade de enunciação? O que este gesto revela sobre nós? Acredito que o mês da Luta Antimanicomial deixa como lastro um convite importante: o de interrogarmos, verdadeira e corajosamente, o sintoma que ronda as bordas da sanidade.
Camille C. Branco é antropóloga, pesquisadora e pode ser encontrada no Instagram.