Bemdito

O Estado pornográfico #1

Como autoridades políticas, administrações municipais e até a Igreja Católica usaram o sexo como controle ideológico séculos atrás
POR Humberto Pinheiro

Como autoridades políticas, administrações municipais e até a Igreja Católica usaram o sexo como controle ideológico séculos atrás

Humberto Pinheiro
hpf1808@gmail.com

A escritora Virginie Despentes já disse que os estupradores são os terroristas do patriarcado, cuidando da parte mais suja desse trabalho já muito sujo. Nenhum empreendimento de dominação oficial funciona sem suas veias paralelas, seus grupos de extermínio, seus capangas para efetivar com mais consistência seus interesses. Aqui, não há violência desperdiçada. Todas as brutalidades podem cumprir papéis no trabalho das acomodações cotidianas, apadrinhando as mais supostamente insuspeitas alegrias do amor. Por isso que, tão importante quanto falar sobre o fato do estupro, é discutir a cultura do estupro, sua formação numa história que não foi apenas as das práticas de violações sexuais de pessoas. É preciso pensar esse cultivo perverso na própria configuração institucional e legal nas últimas centenas de anos. Considerar como a institucionalidade mesma fazia-se com o seu “terrorismo”, negociava e disciplinava arranjos sociais com o uso direto ou indireto desse tipo de violência. E tornava isso despojos de experiências para os negócios e as relações vindouras. Nesse caso, talvez devêssemos dizer de uma trajetória institucional do estupro, pois todo Estado soube se configurar também numa espécie de monopólio da violência sexual legítima, ou quase legítima, ou ambiguamente legítima. Não estou falando desse abuso como tática de guerra e ocupação de território. Este fio é o mais explícito. Quero contar da produção material, cultural e subjetiva nesse tipo de investimento estatal. É expor mesmo como os governos modernos das populações participaram dos cercamentos dos corpos das mulheres, dos colonizados, dos escravizados, além de cercar suas terras. É mostrar como o estupro e a cultura do estupro estavam nesses modos de governar e de marginalizar existências, como uma acumulação primitiva sexual.

Para desmobilizar revoltas de trabalhadores, no final do século XV, na Europa, autoridades políticas davam-lhes sexo gratuito com mulheres pobres, tentando desarticular tensões sociais com abuso sexual. Por volta desse mesmo período, na França, administrações municipais descriminalizavam o estupro para os casos em que as vítimas fossem “mulheres de classe baixa”, ou, como em Veneza um século antes, essa prática não receberia qualquer punição. Para ficar mais claro, Silvia Federici: “a legalização do estupro criou um clima intensamente misógino que degradou todas as mulheres, qualquer que fosse sua classe. Também insensibilizou a população frente à violência contra as mulheres, preparando o terreno para a caça às bruxas que começaria nesse mesmo período”. Preparou ainda para outras formas oficiais de usar o sexo no controle ideológico de camponeses e operários do capitalismo moderno. Um uso que não foi apenas uma estratégia de persuasão, mas que acontecia como um índice econômico e burocrático, figurando o que se podia chamar de um porno-estado. Se muitos estudos culturais mostram os séculos XVII e XVIII como tempos da grande reprodução e circulação da chamada literatura pornográfica, esse intervalo também pode ser lembrado num outro sentido desse termo, menos como romances obscenos do que como gestão pública sexual de corpos. Exemplo desse diferente significado, o francês Restif de La Bretone publica em 1769 o tratado Le Pornographe, no qual discutia a administração e o controle estatal do meretrício para fundamentar sua proposta de nacionalização dos bordeis. Para essa conversa, La Bretonne retomava a definição grega antiga da palavra pornographos, versar sobre a prostituição.

Como mais um movimento de centralização de forças pelo estado, essa estatização sexual articulava-se com os interesses de outros domínios, como o da Igreja Católica. Havia expectativas de o bordel público ser um recurso contra a homossexualidade, contra orgias, garantindo uma proteção à vida familiar. Era todo um saneamento do esperma nas cidades. Uma gestão de corpos e espaços para uma circulação segura e livre de um pau duro. Um preservativo para a nação e para a escrita da sua história, já que feita por homens europeus para homens europeus, mesmo que no “trópico dos pecados”. E as metáforas e o “real” que ainda nos tocam são consequências disso, além de muito do que sobrevive em legislações, em desigualdades, em violências. Durante séculos, o estado moderno legitimou, viabilizou, organizou abusos e violações sexuais dos corpos de mulheres pobres, principalmente. Produziu e fez proliferar colônias, que foram também um modo de pensar, uma razão administrativa e uma lógica de poder. Cada uma dessas colônias, inclusive as que podiam ser forjadas dentro das suas próprias fronteiras, foi também uma colônia pornô, um porno-estado de exceção, um porno-necroestado. E da mesma forma que foram engenhos de técnicas e procedimentos para inventar os corpos para a exploração e a morte, serviram para fazê-los estupráveis, e vice-versa.

Humberto Pinheiro é historiador e desenvolve pesquisa em história da sexualidade.

Humberto Pinheiro

Historiador e pesquisador em história da sexualidade, também tem pesquisas na área de história da literatura e do romance moderno.