O Messias profano ou a escatologia do Anticristo
A ambiguidade do adjetivo “escatológico”, na Língua Portuguesa, é curiosa e talvez revele as ambiguidades próprias do tempo atual. Há coincidências entre as duas palavras de grafia e de fonética iguais, mas que, ao mesmo tempo, possuem origens etimológicas distintas e significados que têm usos os quais se pode dizer que são opostos.
A antieticidade entre as duas “escatologias” se dá porque, no seu primeiro sentido, “escatologia” tem sentido teológico. O eschaton, no grego antigo, é o tempo final. Em O tempo que resta (2000), Giorgio Agamben falava sobre como São Paulo não vivia no fim do tempo, do eschaton, no último dia, mas sim no tempo remanescente, em “o tempo que resta entre o tempo e seu fim”. Pois o eschaton é o apocalipse: “O apocalíptico se situa no último dia, no dia da cólera”.
A preocupação de Agamben nem era exatamente este tempo “escatológico”, mas o tempo contraído, “que resta” entre o tempo e o seu fim (eschaton) – isto é, sua preocupação não era com o último dia, mas com o penúltimo, o tempo messiânico. Mas eu o citei aqui, porque Agamben nos dá uma boa explicação possível sobre o sentido teológico de “escatologia”.
A antítese do escatológico da teologia
Falta, agora, tratar daquele segundo sentido de “escatologia”, possivelmente antitético ao sentido teológico, o qual, logicamente, está associado ao léxico da salvação, da santidade, do Juízo Final sobre os nossos pecados – o momento no qual Messias põe fim ao tempo.
O segundo sentido de “escatologia” seria oposto ao primeiro porque já este é grosseiro, nada santo. É da ordem daquilo que é visceral, referente aos excrementos e às obscenidades. Por isso, dificilmente algo escatológico poderia ser, ao mesmo tempo, escatológico.
Na sua coluna sitiada no blog da revista Veja, chamado Sobre as palavras, em resposta à pergunta de um leitor seu, publicado no dia 23.12.2014 – um dia antes da véspera de Natal –, o escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues explica que uma escatologia em nada tem a ver com a outra escatologia. Pois, enquanto o escatológico teológico se refere ao fim do mundo, ao apocalipse, o Juízo final, “[o] escatológico que se relaciona com fezes também é um termo criado no século XIX a partir do grego, skátos, ‘excremento’”.
Em função disso, muito dificilmente algo santo, redentor, referente à ação final do Messias, transformador de nossas vidas, cordeiro, divino e ungido, poderia se relacionar com a expressão chula de se dizer que se “defecou” para alguém, no sentido figurado, relacionado-se ao ato de não se importar com alguma situação ameaçadora, como quem afirma, em português, o equivalente em inglês à frase: “I don’t give a shit!”.
Esses seriam aqueles momentos mais ou menos raros de ocorrer numa língua. Ao menos em seu nível consciente. Pois, como disse, algo escatológico, portanto, jamais poderia ser escatológico. Os sentidos parecem ser mesmo, como se pode ver, diametralmente opostos. Aquilo que se referia ao Messias e à sua escatologia não pode estar relacionado à escatologia excremental. Contudo, eventualmente, essas palavras de sentidos opostos podem coincidir, intencionalmente ou não, no estado atual profano da linguagem e da comunicação políticas.
Interpretação profana
Quando o sentido secularizado de messianismo, momento quando se tem um líder salvador, um político messiânico, passa a se mostrar como o inverso de seu sentido original, sacralizado, ou seja, quando aquilo que era para ser escatológico é, agora, escatológico, então, talvez, estejamos, também, no momento em que uma verdadeira profanação teológico-política se revela – talvez potencialmente mais redentora do que nunca.
Em O elogio da profanação, ensaio presente em Profanações (2005), Agamben diz que o ato de profanar é algo sobre o qual “os juristas romanos sabiam perfeitamente”. Enquanto o ato de consagrar algo era o ato de retirar as coisas da esfera do direito humano, do contrário, o ato de “profanar, por sua vez, significava restituí-las ao livre uso dos homens”.
Por isso, diferentemente do que se pode pensar, aquilo que é religioso não é aquilo que conecta o humano com o divino. Conforme diz Agamben, “Religião não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos”.
Todavia, o ato de profanar também não seria o de meramente restabelecer uma conexão, a qual a religião desfez. Conforme também diz Agamben, mais que do isso, “[p]rofanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um novo uso, a brincar com elas.”.
Portanto, quando um líder messiânico confunde escatologia com escatologia, isto é, a salvação com a defecação, mais do que o mau gosto de ter de escutar este tipo de linguajar, talvez haja, ao mesmo tempo, uma importante revelação sendo feita, algo de salvífico, para acabar com nossas esperas.
Trata-se da revelação de que aqueles que se apresentam como “o messias” na política, neste “tempo do niilismo”, por justamente se mostrarem como tais, são, na verdade, farsantes de santificação, incorporando uma paródia macabra de salvador – não só de nossos pecados, mas também da pátria, talvez. Está-se diante, portanto, não do messias, mas do seu opositor anti-crístico.
Se é o anti-messias que se apresenta, então estamos diante de um sinal temporal revelador. Encerro este ensaio escatológico lembrando da seguinte passagem da 1ª Carta de João, 2:18, convidando a uma leitura escatológica: “Rapazes, [a] hora é [a] última. E tal como ouvistes que vem um anticristo, e já muitos anticristos surgiram, é daí que sabemos que [a] hora é [a] última.”.