O órfão de Chao quer vingança
Vinte anos após ver toda a família assassinada, o cavaleiro descobre que o responsável pela chacina é seu pai adotivo
Alan Norões
alansnq@gmail.com
Por ambição e inveja, o general Tu-an Ku concebe um terrível plano: anuncia ao rei que um dos cortesãos trama em segredo assassiná-lo num golpe de estado e acrescenta que a identidade desse traidor poderia ser descoberta facilmente usando os préstimos de um cachorro mágico, que havia sido enviado como presente pelo soberano do Tibete. Assim foi feito. O animal, treinado durante meses para o espetáculo, atuou com perfeição e perseguiu, pelo gigantesco salão real, o inocente Chao Tun, sujeito de alma boa que, há anos, caíra nas graças do monarca. A punição não tardou. Trezentos membros da família conspiradora foram aniquilados, exceto dois, mantidos em rígida prisão domiciliar e quase totalmente excluídos do mundo: o filho do acusado e a princesa, sua esposa, que estava prestes a dar à luz uma criança. Mas o ódio impedia que restasse qualquer um daquela linhagem. Então o general envia o emissário com um falso édito exigindo que o jovem cometesse suicídio. O rapaz obedece, porém antes pede à mulher que salve o pequeno para que este pudesse no futuro vingar as memórias do pai e do avô.
Talvez houvesse mesmo uma maneira de evitar a captura do recém-nascido. Para isso, a mãe convoca Ch’êng Ying, boticário que, em outros tempos, muito havia sido ajudado por Tun. Diante do homem, ela, que em breve terá se enforcado, suplica algum socorro. A princípio, Ying hesita, pois sabe que, se for pego com o neto de um inimigo público, será torturado e morto. Entretanto, os sentimentos de gratidão e compaixão o vencem; e decide esconder o bebê dentro de sua valise, em meio aos remédios que utiliza para cuidar dos doentes. Ao atravessar os portões da fortaleza, é parado pelo guarda responsável por revistar os que saem.
— O que há aí dentro?
— Ervas.
— Que ervas?
— Preparados para tosse, licor de raízes, hortelã e outras mais.
— O que você está escondendo, hein?
— Nada, senhor.
Ying começa a suar. Evidentemente há algo errado. O que seria? Ainda assim, o soldado deixa-o partir sem pedir para olhar o conteúdo da bolsa. Alguns passos adiante, ouve-se um chorinho abafado.
— Atenção, senhor! Volte agora! — grita o oficial.
Ying compreende que será pego. Fica imóvel, sem conseguir fugir, nem acatar à ordem, até que decide cumprir o que lhe impunham. O militar finalmente abre a maleta, vê o menino e afirma num tom decidido:
— Pode ir embora.
Horas depois, por ter desobedecido a seus superiores e seguido a própria consciência, o guarda degola-se. Ao ser informado sobre o corpo, Tu-an Ku pressente o perigo e exige que todas as crianças de até seis meses de idade sejam chacinadas enquanto não aparecer o verdadeiro neto do infiel. A matança devora o reino de Tsin.
A essa altura, Ying já batia à porta de Kung-su Ch’u-chiu, ex-combatente que fora amigo do injustamente acusado. Confabulando, os dois chegam a uma saída ao mesmo tempo corajosa e inacreditável:
— Vou sacrificar meu filho — resolve Ying.
O farmacêutico deixa o próprio rebento nas mãos de Ch’u-chiu e leva para casa o neto de Chao Tun como se fosse seu. Segue para o palácio e avisa Tu-an Ku:
— Sei onde está a criança.
Uma tropa corre para o local, captura o velho e o amarra vendado num tronco.
— Como pode me garantir que tudo isso não é uma encenação? — preocupa-se Tu-an Ku. — Se o que você está dizendo é verdade, torture este homem.
Ying não pode titubear; é obrigado a pegar um pedaço de madeira e açoitar Ch’u-chiu.
— É você, Ying? — grita o ancião, contorcendo-se de dor. — É você? Como pode fazer isso comigo?
— O que ele está querendo dizer? — pergunta o general, desconfiado, talvez começando a perceber o estratagema.
— Os golpes estão fazendo esse pérfido delirar, comandante.
Um neném é achado dentro da casa e, tomado por quem eles procuram, esfaqueado ali mesmo, na frente de Ying, que se controla para não externar nenhuma emoção.
O tempo passa. Mais precisamente 20 anos. O general ainda é uma proeminente figura da corte, porém algo mudou. Ying, que fora bem recompensado pelos serviços e acabou angariando um posto na burocracia estatal, deixou Ch’êng Po, aquele a quem chamava de filho, ser adotado afetivamente por Tu-an Ku. Este ensinou ao garoto todas as artes militares e o transformou no melhor cavaleiro que o reino conhecera. O moço cavalgava com rapidez imbatível, flechava feito nenhum outro homem e esgrimia com absoluta excelência. A farsa não poderia continuar por mais tempo. Ying arquitetou para que Po lesse, num antigo pergaminho, os trágicos acontecimentos da sua gente.
Ao descobrir tudo, o rapaz monta no cavalo e vai encontrar o general. É na praça do mercado que eles se deparam um com o outro, em meio ao burburinho dos passantes.
— Assassino! — grita Po. — Eu não me chamo Ch’êng Po. Eu sou o órfão de Chao!
Toda a cidade se apinha para assistir à cena. O jovem ataca de surpresa; desenvolve-se um duelo implacável; por fim, a lança feroz trespassa o pescoço de Tu-an Ku, que cai no chão poeirento ainda esguichando borbotões de sangue. A vingança desejada há tantas décadas foi finalmente cumprida.
Quando no século XIII de nossa era os mongóis conquistaram a China continental e Kublai Khan fundou a dinastia Yüan — relegando os intelectuais confucionistas aos mais baixos círculos sociais —, o país, ainda que tiranizado, viu irromper uma inaudita liberdade cultural cujos frutos certamente se encontram na literatura dramática. Descendentes diretas da poesia recitativa que recebe o nome transliterado de t’ao shu, as peças de Yüan conheceram por bastante tempo uma enorme popularidade, concretizada em teatros lotados, e só por isso hoje temos acesso a uma centena de dramaturgos e cerca de 700 textos.
Enquanto na mesma época o Ocidente produzia apenas tediosos autos religiosos após um silêncio teatral que havia durado séculos e séculos, os chineses aproveitavam histórias populares, velhas narrativas, poemas épicos e outros gêneros de tramas para compor, seja por grupos profissionais, seja por prostituídos de ambos os gêneros, divertidas obras que misturavam música, dança e um profundo senso de entretenimento. Nesse palco surgem damas e camponeses, generais e fantasmas, deuses e reis. Quase invariavelmente têm estrutura em quatro atos. O início forma-se sempre com uma espécie de apoio ou cunha, em que um dos personagens se apresenta — as figuras importantes todas se apresentam, vale destacar — e situa o espectador numa ficção que já está in media res. As melodias vêm de instrumentos assemelhados a cítaras, tambores, flautas, bandolins.
Algumas dessas dramaturgias estão registradas num conciso livro que a Penguin Classics fez publicar e que tem a organização de Liu Jung-en: Six Yüan Plays é uma coletânea baseada no mero gosto pessoal desse professor, mas em certo sentido representativa do paladar do público à época. Foi daqui que extraí a história narrada acima. O autor de The Orphan of Chao é Chi Chün-hsiang, que deve tê-la escrito em fins do século XIII. Dizem que concluiu ao todo oito textos (há controvérsias); no entanto, apenas um deles, o que relatei, está inteiro; outro, intitulado Ch’ên Wên-t’u Attains His Illumination in a Dream under a Shade of Pine-tree, sobreviveu apenas em fragmentos.
Embora cheia de incongruências e lacunas, a peça que lemos hoje, sem dúvidas, desperta um profundo sentimento catártico porque trata do mais irracional, mas também do mais visceralmente humano entre nossos desejos primitivos: a vingança. Há outro componente que reforça o caráter imemorial da experiência. Essa trama — o bebê nascido de determinada família e, por circunstâncias infelizes, cuidado por outra — inspira-se decerto num mito ancestral, comum a diferentes culturas, investigado por Freud quando ele discutiu as origens de Moisés e o surgimento do monoteísmo judaico. Compreende-se, então, muito bem por que as desventuras do órfão eram tão apreciadas na China do período.
Alan Norões é escritor e revisor de textos. Publicou Os senhores repararam que a viscondessa de Mataburros é uma porca? (2020). Está no Instagram e no Twitter.