O que pode um corpo?
O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo — exclusivamente pelas leis da natureza enquanto consideradas apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente — pode ou não pode fazer.
Espinosa – Ética II, Prop.2
Há perguntas nunca formuladas, mas que são carregadas em silêncio, no fundo do peito, enquanto se passa uma vida inteira ensaiando-lhes respostas, inadvertidamente. Passo a passo, o indizível se faz enigma nos gestos que se repetem e se multiplicam. Ganha forma, textura e variedade. Dá-se a ver nos músculos e nos ossos; nas pausas que precedem a aceleração do que, transbordando, busca um lugar, um ponto de encaixe ou alguma organização provisória.
Vez ou outra, um vento sopra e faz direção, ajudando navegantes perdidos a encontrarem terra firme, porto onde fazer parada (tempo de juntar provisões para a próxima viagem). É o que acontece quando as palavras voam em bando, compondo um só movimento, uma aparência de unidade para corporificar o que, até então, era espectro, criando linhas de corte, fragmentos a serem tocados. O que pode um corpo? Movimento-me com essa pergunta há alguns anos, à medida que colho gestos para fazer dele uma extensão do mundo, mais um fio na trama vital de matérias em fluxo.
Eu poderia tratar aqui das dores que acompanham tantos de nós na experiência de disciplinamento corporal radicalizada na pandemia; ou, usando exemplo mais chão, contar da difícil relação com a cadeira onde me sento, horas a fio, inclusive para escrever estas linhas, todos os dias. E de como ela ajuda a criar a ilusão de que não tenho corpo, de que posso me entregar, sem consequência, ao trabalho ininterrupto alimentado pela necessidade de sobrevivência.
Mas quero lhes falar de outra coisa, talvez dos gestos daqueles que inventam, para si, um outro tempo, uma outra geografia sensória. Que fazem da brincadeira e do jogo uma maneira de não esquecer do corpo e daquilo que ele convoca. Um jeito de lembrar, para dizer com Mestra Janja, de que temos joelho. Ou talvez das condições que nos ajudem a ensaiar uma mandinga, uma malemolência, um requebrar de quadris que libere o corpo do organismo, da sucessão de rotinas que nos empurram a tarefas esvaziadas de desejo.
De modo a encenar uma relação com a pergunta que ateia este texto é necessário dar um pulo para trás adiantando o que o corpo já não aguenta, pois é esse reconhecimento que perfaz sua própria condição de ser (Lapoujade, 2002). Mobilidade que permitirá liberar a potência que lhe é própria, “superior àquele da atividade do agente”.
Neste catálogo infernal, há, de um lado, as forças que o constrangem por fora, compondo assujeitamentos que o comodificam e o integram a dinâmicas de reprodução do capital, fazendo com que tudo aquilo que não é da ordem da utilidade, da função e do contabilizável seja reprimido. De outro, há o que o aprisiona por dentro, a consciência que se organiza em torno de um “eu” que o determina, “o corpo sofre de um ‘sujeito’ que o age” (Lapoujade, 2002). E assim sua potência se esvazia, transformado em autômato, mas a custa de um profundo desalento.
No ponto onde essas forças intensivas se cruzam, este quase desaparece, reduz-se a um mínimo operacionalizável, alijado de tudo aquilo que faz dele corpo. Quantos movimentos “inúteis” realizamos ao longo do dia? Quantos ligamentos, músculos e articulações convocamos em vista de executarmos tarefas absolutamente desvinculadas de uma finalidade imediata? Enquadrados por cadeiras, dispositivos disciplinares sem os quais seria difícil imaginar o capitalismo, nos tornamos duros, doloridos, encurtados, doentes. Perdido o sentido íntimo da pele sobre a pele, a cenestesia do contato de si sobre si, vão-se embora torções e desdobramentos sem os quais não há “verdadeiramente sentido íntimo, nem corpo próprio”, pois “A boca que toca a si mesma faz sua alma e sabe dá-la à mão, a mão que aperta a si mesma sabe formar sua alma pálida, pode dá-la, ao bel-prazer, à boca que já possui” (Serres, 2001).
Voltar à pergunta “O que pode o corpo?” é vislumbrar, nesse instante, a possibilidade de estabelecer a cinética corporal, alterando um pouco a fórmula de Michel Serres (2001), como aquilo que “inaugura e condiciona a metafísica” ou mesmo a ética, pois “qualquer julgamento da inteligência é ainda um julgamento muscular” (Tavares, 2013). Aquele/a que não joga com o corpo, que não se deixa espraiar em meneios que buscam dançar com as coisas, que renuncia à ginga, ao rebolado padece de uma redução da existência, da capacidade de refletir sobre o mundo e de adentrar paisagens imprevistas.
O corpo que grita “Eu não aguento mais” é também aquele que se abre à potência de resistir, que escapa à doença de ser agido, de possuir uma alma (Lapaujade, 2002). Daí o que emerge é um campo aberto de experimentações singulares, de invenção de modos de vida não saboreados, de risco e de aventura, de formas de gozo ainda sem referente, de outras maneiras de encontrar o prazer e de amar. Se para Lacan, a lalangue diz daquilo que escapa à língua, que nela faz furo, desorganizando sua estrutura e permitindo novas simbolizações, de maneira análoga, o corpo é aquilo que escapa ao organismo, ativando transformações que suscitam aproximações com outros corpos, potencializando a dimensão comum da existência, aquilo que vai abeirar agências humanas e não humanas.
Nos dois exemplos é a brincadeira como exercício, espécie de metafísica incorporada, volteio de corpo, passo de dança, gesto de luta, ensaio de liberdade, invenção de formas, o meio pelo qual cada um de nós pode experimentar a criação de um corpo sem órgãos, da soltura da potência que lhe é própria. O risco é o preço, mas haverá vida sem ele? “Se te queres salvar, arrisca tua pele, se queres salvar tua alma, não hesites aqui, agora, a entregá-la à tempestade variável. Uma aurora boreal brilha na noite, inconstante. Propaga-se como esses letreiros luminosos que não param de piscar, acesos ou apagados, clarões ou eclipses, passa ou não passa, mas em outro lugar, flui, irisado. Não mudarás se não te entregares a essas circunstâncias e a esses desvios. Sobretudo, não conhecerás” (Serres, 2001).