Obrigação de se posicionar?

Ao lado dos coaches de vida e das torcidas organizadas de ex-BBBs, a pior categoria que nos trouxe as redes sociais na última meia década foi a figura do artista isento. E aqui uso “artista” no sentido puramente generalista e pouco objetivo de oposição aos que escolhem permanecer anônimos – categoria cada vez mais escassa em tempos de superexposição. A celebridade. O famoso. A estrela. O artista isento. 

Você já o conhece. Aquela global do horário nobre que participou das passeatas pelo impeachment de Dilma Rousseff e que agora se diz neutra. Aquele ex-Globo, atual Record, futuro OnlyFans que posou ao lado do boneco do Super Moro nas campanhas de 2018 e que hoje se coloca em cima do muro. O galã feio que fez arminha com a mão e que em 2021 responde envergonhado que seu único partido é o Brasil. Em comum entre todos, a subversão do discurso e das imagens que eles mesmos produziram, a mal dissimulada negação de um passado tão recente que ainda se confunde com o presente. A derrocada do governo que ajudaram a eleger fez com que proliferassem. Os isentões estão entre nós, tão falsos e escorregadios quanto Nise Yamaguchi.

Uma Nise Yamaguchi que, afinal, é signo de um processo nada novo de institucionalização da isenção, a própria CPI da Covid sendo arena de exibição dessa prática. Yamaguchi, Mandetta, Teich, Queiroga, e a nova diva Luana Araújo: todos sustentam em seus discursos, em diferentes graus, argumentos de isenção que ofuscam o seu passado e, inacreditavelmente, conseguem convencer diferentes fatias da oposição, de intelectuais a anarquistas de poltrona, de parlamentares calejados a analistas de primeira viagem. 

Vale destacar que o argumento da isenção, da neutralidade política, do interesse único e exclusivo pela nação é um discurso que se direciona única e exclusivamente às camadas de oposição do governo, porque enquanto tentam nos convencer de sua neutralidade, os isentos continuam, com suas atitudes, fortalecendo estreitos canais de comunicação e respaldo com os que ainda hoje permanecem ao lado do presidente. Dizer-se isento é a história pra boi dormir. Nós, os bois, dormimos, fantasiando novas histórias e novos heróis, meteóricas estrelas, enquanto a extrema direita se fortalece com um discurso que de isento não tem nada.

No caso mais recente de um artista que se posicionou pela isenção, a atriz Juliana Paes publicou em seu Instagram, para seus 29,5 milhões de seguidores, vídeo em que defende sua posição de neutralidade em relação à dicotomia esquerda versus direita. Em cinco minutos de um discurso calculado para a sua audiência, não citou a criminosa gestão do presidente que ajudou a eleger, mas elaborou argumentos falsamente complexos para criticar os “delírios comunistas da extrema esquerda”.

O êxito de sua empreitada aparece nos comentários: milhares de pessoas, colegas de profissão e anônimos, aplaudem sua neutralidade sapiente. Um argumento de neutralidade que, como escrevi no parágrafo anterior, convence os incautos da oposição e alimenta o caldeirão conspiratório da extrema direita. 

Quando vejo, em alguma rede social, a cobrança pelo posicionamento político de algum artista, encontro também a réplica de seus fervorosos seguidores. “Ele não precisa se posicionar, apenas continuar fazendo arte”, “ela é artista, não política”. E então o próprio artista, apropriando-se do argumento de seus fãs, reproduz e acentua a separação entre política e arte. Inebriados pelo culto à celebridade, engrenagens do mesmo aparato doentio de valorização do superficial, nos contentamos com a aparente coerência da resposta. São artistas, afinal. 

Não vem ao caso, aqui, refletir sobre a cada vez mais dilatada abrangência do termo artista. Como disse no início deste texto, aqui uso a palavra em oposição aos que deliberadamente escolhem permanecer anônimos. Então, estão também incluídos neste grupo os artistas sem arte, as estrelas autorreferentes. Os que são famosos porque são. Assim como também estão incluídos os que são péssimos na arte que se propõem a realizar, embora exímios mobilizadores de algoritmos, ou que são, simplesmente, brancos e ricos. 

Tem o artista a obrigação de se posicionar? É evidente que não. Mas nós deveríamos, sim, ter a obrigação de não cair nesse conto da carochinha que é a desobrigação e a neutralidade. O desobrigado e o neutro escolheram o seu lado, e não é o nosso. Manter-se isento quando o cálculo de mortes avança em estranhíssimo compasso com o cálculo de crimes de responsabilidade é estar ao lado das condutas que respaldam esses procedimentos. Se o falso e calculado discurso da isenção nos incomoda – e efetivamente deveria incomodar -, o que podemos fazer é seguir aquela recomendação que, vez por outra, aparece por aí. Stop making stupid people famous. É hora de reverter a fama dos estúpidos.