Onde o direito toca (ou não) a campainha
O amanhecer da última quinta-feira, 16, em Fortaleza foi bem tumultuado aqui nas bandas da Aldeota, Meireles e adjacências. Muitas viaturas policiais, em torno de 300 agentes reviraram mais de 1.100 domicílios. Segundo consta, a polícia cumpria mandado de busca e apreensão coletivo com o objetivo de localizar foragidos e trazer segurança e tranquilidade ao bairro. Essa segurança e tranquilidade será conquistada com a minuciosa vistoria de todos os domicílios da área. Obviamente, tudo com a melhor das boas intenções.
Logo que as viaturas chegaram a diversos prédio os porteiros ficaram aterrorizados com policiais armados entrando em suas portarias, os coturnos manchando o mármore e o porcelanato da chiqueza alencarina.
Madames mais dispostas que já estavam saindo de casa em trajes de academia tiveram que voltar para seus apartamentos, alunos dos colégios bacanas, sem ter quem os levassem para a aula, ficaram prostrados nos sofás cutucando as redes sociais e com aquela cara que só adolescente sabe fazer.
As empregadas domésticas que chegavam para trabalhar estavam agoniadas com aquilo. “Vai atrasar o almoço, isso se ninguém aqui de casa for preso, porque se for, aí vai ser mais complicado ainda”. “Dona Márcia, esse povo todo depois vai arrumar os quartos né?”. “E se quebrar alguma coisa, quem ajeita depois?”. “Dona Roberta, é pra botar mais lugares na mesa ou esses policiais já vão embora?”.
E o bafafá depois que a polícia saiu dos prédios? Quem foi preso? O que foi encontrado? Onde?
“Sempre soube que ele não era boa gente…”. “E aquela menina??? Cara de boa moça, mas quem diria, parece que acharam um baseado no quarto dela”. “Delegado disse que não queria nem saber. Baseado no quarto era tráfico”. Tráfico. “E os remédios de dona Rosana?” Vixe, deu problema.
“Parece que Dr. Marcelo estava escondendo dinheiro de imposto numa mala na garagem”. “Quando a polícia abriu o guarda-roupa de seu Afonso encontrou várias armas, parece que tudo ilegal”. “Coitado do seu Afonso, sempre aparentou ser um senhor tão distinto, tirando aquela mania dele de andar armado e falar que bandido bom era bandido morto, era gente boa”.
“E Dona Margarida, que tinha comércio de importados de Miami? Parece que o delegado levou tudo e disse que nem tudo era importado. Acho que ele disse que tinha coisa falsa… quem diria um negócio desses de Dona Margarida?”. “Na casa do Seu Haroldo encontraram até uma balança que disseram ser para pesar droga…” Quem diria…
Pois é, uma cena dessas nunca aconteceu. Na Aldeota. Mas aconteceu no Residencial Yolanda Queiroz, também em Fortaleza. Mas não na Aldeota ou no Meireles, os bairros chiques. Que Cocó e Guararapes me desculpem.
Hora da realidade
Na quinta-feira passada esses policiais todos, munidos de um mandado de busca e apreensão coletivo para mais de 1.000 residências — isso mesmo, para mais de 1.000 — entrou em todo um conjunto residencial. Revistou casas, documentos, intimidades e dignidades. Tudo. Segundo consta, buscavam suspeitos, pessoas com ordem de prisão em aberto, drogas e provas de atividades criminosas. Sim, genérico assim mesmo, até porque, em mais de 1.000 casas tinha mesmo que ser bem genérico.
O saldo da operação, que usou em torno de 300 policiais (repito porque é necessário para se entender) e podia entrar em mais de 1.000 domicílios foi de vários celulares apreendidos e 6 prisões (sim, 6 prisões, 300 policiais e mais de 1.000 domicílios). Não há aqui qualquer desejo por muitas prisões, pelo contrário. Mas se havia tantos motivos e tanta necessidade de “combater o crime” nessa localidade, esse resultado não é de causar estranheza? Mesmo se tivessem prendido muitos, continuaria sendo errado, como veremos.
No mesmo dia a defensoria pública pediu a decretação de ilicitude e a consequente nulidade de tudo, além da devolução dos objetos e aparelhos apreendidos. Além disso, pediu também que os presos na ação fossem soltos. Como bem foi articulado na peça do defensor público Bheron Rocha, é um caso clássico de criminalização da pobreza. Nesse tipo de ação tão genérica em regiões tipicamente humildes fica claro que o direito é um na Aldeota e outro no Residencial Dona Yolanda Queiroz.
É tão claro que se trata de medida de seletividade penal que os tribunais superiores já vêm entendendo como ilegais os chamados “mandados de busca e apreensão coletivos”. Essa carta branca que é dada para a polícia entrar nas casas pobres é algo que ofende o direito constitucional de inviolabilidade do domicílio e acaba por perpetuar a exclusão e violações de direitos humanos.
O Superior Tribunal de Justiça há tempos já vem decidindo que se trata de ação ilegal, sem respaldo no direito. O Ministro Rogério Schietti, inclusive, em uma decisão de 2019, afirmou que mandados de busca e apreensão coletivos são ilegais e que todos merecem proteção, seja no barraco ou na mansão.
Um comentarista, desses de internet, falou: “mas como prender os bandidos na favela sem mandados coletivos?” Pois é, de forma enviesada, mas dá para explicar muita coisa a partir da fala dele. Começa que a impossibilidade desse tipo de medida é uma forma de proteção para todos, como disse o ministro. Proteção para mim, para você caro leitor ou leitora e até para o comentador. E, como já falamos aqui desde o começo do texto, com qual autoridade apontamos onde moram bandidos? Por que esse apurado sentido geográfico sobre o CEP dos bandidos só aponta para a mesma região?
Aqui penso ter a resposta. Só aponta para as regiões pobres porque são as regiões onde o direito não entra para proteger, mas sim para violentar comunidades inteiras, como que em um determinismo geográfico que se perpetua há séculos. Na periferia, as proteções construídas ao longo de toda a nossa experiência civilizatória não chegam.
Na Aldeota é o contrário. Na aldeota, as ruas têm dono e esse dono é o “cidadão de bem” (expressão carregada, por óbvio, com todas as camadas de ironia possíveis). Aqui na Aldeota não anda bandido, pelo menos não os que o cidadão de bem desconhece. Aqui, a rua tem dono e o direito, o mesmo que esse cidadão aldeotino relativiza na periferia, é defendido na sua porta com unhas e dentes. Não penso que é certa a mesma busca e apreensão coletiva na Aldeota. Está errada lá e cá. Mas cá, nem se preocupem, não veremos. Então, sejamos contra o que se mostra aos nossos olhos e deveria doer no nosso coração, ou você gostaria de ver a polícia entrando em sua casa?
É o direito que chega a uns e não chega a outros.