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Poço da Draga: uma história de resistência

Especial Poço da Draga | Ameaçada por empreendimentos, comunidade completa 115 anos de luta pela permanência no território
POR Leonardo Araújo
Foto: Fortaleza Nobre

Especial Poço da Draga | Ameaçada por uma série de empreendimentos, a comunidade completa hoje 115 anos de luta pela permanência no território

Leonardo Araújo
araujovleonardo@gmail.com

Nascido e criado em uma periferia de Fortaleza, afastada do Centro e do litoral, as raras idas à Praia de Iracema pareciam, a mim, pequenas viagens a um lugar mágico e, ao mesmo tempo, insondável.

No amplo calçadão, próximo de onde hoje está situado o Centro Cultural Belchior, a garotada deslizava de patins, skate e bicicleta sob o olhar cuidadoso dos pais, muitas vezes solicitados, aos prantos, para conferir consolo aos joelhos ralados e aos “galos” que cantavam na cabeça dos rebentos danados como o cão.

Para uma criança dos anos 90 como eu, esse era um programa igualado à feirinha da Avenida 13 de Maio, salpicada de pequenas barracas, nas quais eram vendidos brinquedos baratos e comidas típicas; ou ao passeio no Iguatemi, de onde não saía sem um lanche e uma só ficha de fliperama a que tinha direito, perdida tão rapidamente quanto havia ganhado.

Apesar disso, a Praia de Iracema possuía algo diferente, um ar misterioso que não sabia explicar ou dizer de onde vinha, mas que era sentido nos ossos. Como saíamos de casa no final da tarde, em pouco tempo, a noite chegava cheia de estrelas, trazendo consigo, por vezes, uma lua tão grande e brilhante que parecia querer imitar o sol que saíra minutos antes. Talvez minha impressão tivesse a ver com a brisa que passava carinhosa pelo corpo, fazendo-me arrepiar em cima da pequena bicicleta que equilibrava com dificuldade, já sem as rodinhas.

Ou então talvez se relacionasse com a presença imponente do mar se batendo contra as pedras, escuro como a noite, lançando gotículas que às vezes iam pousar na pele quando acontecia de eu passar perto o suficiente para receber aquele batismo salgado. Também havia a Ponte Metálica, com sua estrutura antiga e mal cuidada, lembrando os restos de uma cidade enigmaticamente abandonada. Lembro que ela era o ponto limite da distância que eu podia percorrer. Depois, o desconhecido, um perigo apenas insinuado pela proibição não explicada. Como menino obediente, ao avistá-la, dava meio volta e rumava para o lugar de partida. Mas o que havia depois de lá?

Algumas décadas mais tarde, recém-formado em Direito, e com a certeza de que não queria me tornar advogado ou concurseiro -então as únicas opções que pareciam existir -, tive a incrível sorte de conhecer uma organização de direitos humanos que mudou minha vida para sempre. Seu nome era Urucum e tinha sido pensada como um espaço de atuação independente junto a movimentos sociais, na luta por cidadania e pela garantia de direitos.

O ano era 2012 e muita coisa já havia mudado no país, em razão do governo do Partido dos Trabalhadores. O progresso, no entanto, trouxe outros desafios para os territórios que, na visão das autoridades, colocavam-se no caminho da “modernidade”. E foi só ao acompanhar de perto a luta de um desses territórios contra a gentrificação e as ameaças de remoção que pude saber o que havia além da ponte.

Entre a Rua dos Tabajaras e a Gerson Gradvohl, próxima à antiga empresa CIDAO e à Indústria Naval do Ceará (INACE), localizava-se uma das ocupações populacionais mais antigas de Fortaleza, o Poço da Draga. Segundo informações do Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA), produzido em 2011 por ocasião da construção do Acquario Ceará – obra milionária e repleta de irregularidades -, a comunidade era formada, em sua maioria, por jovens adultos na faixa dos 20 aos 29 anos, sendo composta por 1.071 habitantes e 263 imóveis, a maior parte sem regularização fundiária. Além disso, nos últimos anos, o local passara a receber intenso fluxo de novos habitantes, muitos deles fugidos de outros lugares em razão de conflitos ligados ao tráfico de drogas.

Tudo isso – e outras coisas mais – aprendi nas inúmeras idas à comunidade, especialmente entre 2012 e 2015, período em que passei a integrar a equipe de trabalho da Urucum, dando continuidade ao projeto A Comunidade dá as coordenadas, dirigido pela amiga Talita Furtado, hoje professora da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (UFERSA).

Dessa forma, com o “Direito à Resistência” seguimos, juntamente aos moradores, com a confecção dos mapas sociais, em contraposição àqueles elaborados pelo poder público, que apagavam a comunidade da região destinada a receber o oceanário. Pela metodologia cartográfica, aplicada em parceria com o Laboratório de Cartografia da Universidade Federal do Ceará (LABOCART/UFC), os moradores do Poço podiam gravar no papel sua relação afetiva com o território, identificando os principais conflitos vivenciados, assim como os eventos mais marcantes da história local.

O processo se dava por meio da realização de oficinas mediadas pelos integrantes da Urucum, reunindo crianças, lideranças comunitárias e pessoas que representavam a história viva do lugar, trazendo consigo relatos dos primeiros tempos e dos inúmeros desafios à permanência ao longo das décadas e das gestões que teimavam em ignorar a riqueza do Poço e de sua gente.

Minha primeira visita se deu em uma dessas ocasiões. O coração batia acelerado pela memória das noites de infância em que o além ponte era apenas um mistério abandonado às minhas especulações pueris. Seguindo o caminho das pedras, fui caminhando pela Rua dos Tabajaras até chegar às Irmãzinhas, onde hoje fica o Pavilhão Atlântico, e de lá continuei pela rua principal, que cortava a comunidade de ponta a ponta até cruzar com a antiga linha férrea, usada, anos atrás, para o transporte de madeira, algodão e óleo.

A comunidade estava um silêncio só, a não ser pelo apinhado de gente numa das casas que recebia a atividade, despertando a curiosidade da criançada pelo movimento trazido por aquela gente de fora. Acompanhava tudo com poucas palavras e olhos curiosos, perguntando a mim mesmo como era possível que eu desconhecesse a existência de um lugar que fazia parte da história encarnada de Fortaleza. Falo da cidade real, não da outra que a gente brega insiste em querer transformar em produto de exportação, espécie de “Miami do Sul”.

Mal sabem que o Poço da Draga tem um dos pores do sol mais bonitos de Fortaleza e uma exuberante potência vital, que se agita no corpo de seus atletas, na criatividade de sua juventude, na memória e sabedoria dos mais velhos. E tudo construído segundo a filosofia do “nós por nós”, sem esperar pelos políticos, que, salvo raras exceções, só aparecem para pedir voto ou ameaçar a comunidade com algum novo empreendimento.

Se o Poço resiste, mesmo em uma das áreas mais valorizadas da capital, é pela capacidade de luta e pela resistência dos moradores, que até sistema de esgoto tiveram que construir, devido ao completo descaso do poder público.

Nesses 115 anos de vida, desejo que a comunidade continue escapando do olhar colonizador daqueles que tentam usá-la em benefício próprio e das iniciativas higienistas que querem empurrar goela abaixo a ideia de uma “cidade entretenimento”. E que seja finalmente reconhecida e valorizada por sua brava gente e rica história. Viva o Poço!

Leonardo Araújo é psicanalista e pesquisador em antropologia/sociologia. Está no Instagram.

Leonardo Araújo

Psicanalista, é mestre em comunicação e doutor em sociologia, com pesquisa em corpo, arte e política.