Polícia para quem precisa de polícia
Atuação desigual em bairros ricos e pobres mostra que é urgente a reconstrução das forças policiais no Brasil
Alex Mourão
alex.mourao5@gmail.com
A música Polícia, composta por Tony Bellotto e gravada pelos Titãs no disco Cabeça de Dinossauro de 1986, infelizmente, mostra-se ainda atual e sempre presente no debate sobre segurança pública. Mostra disso ocorreu na semana passada, quando uma operação da Polícia Civil carioca invadiu o Jacarezinho, comunidade pobre do Rio de Janeiro, e deixou um rastro de sangue e choro, trazendo à tona todo o debate sobre ações desse tipo e a sua legalidade.
Quando assumiu o governo do estado do Rio, Wilson Witzel se apresentou como um intransigente defensor da lei e da ordem – como está na moda até hoje entre os cidadãos de bem – que declarou guerra às comunidades pobres de seu estado. Na verdade, essa guerra já existia, o que ele fez foi apenas dar continuidade às ações que já vinham sendo questionadas por uso excessivo de força em desrespeito aos próprios protocolos policiais.
Diante da institucionalização do uso desmedido de força letal, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) ingressou com Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamentou (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF). Com a pandemia, foi requerida a liminar para a suspensão das ações policiais. Em agosto de 2020, o STF manteve a tutela provisória anteriormente deferida, suspendendo as incursões policiais nas comunidades pobres do Rio de Janeiro enquanto estivéssemos atravessando a calamidade sanitária. Portanto, desde a decisão, a regra era a proibição desse tipo de ação, sendo permitida apenas em casos excepcionais, com prévia informação e acompanhamento do Ministério Público do Estado.
O Ministério Público do Estado, no mesmo dia publicou nota no site do órgão, informando que havia tomado conhecimento da operação às 9 horas da manhã e que o objetivo era o cumprimento de mandados judiciais de prisão preventiva, de buscas e apreensões. Ao que parece, de fato, a Polícia Civil informou ao Ministério Público, como exigido pelo STF, porém, é preciso questionar: essa informação seria motivo para validar a ação como foi feita? Ao que parece, a combinação entre a informação prestada no mesmo dia e o resultado de tantas vidas perdidas não é o que se possa chamar de uma ação bem sucedida.
Seguindo um já famoso e macabro roteiro, logo em seguida às ações policiais que culminaram na morte de 28 pessoas, começam a surgir informações sobre passagens criminais dos envolvidos, em especial dos que morreram. Esse já é um movimento que, de tão repetido, já é esperado, como se o fato de alguém ter condenação ou responder a algum processo o torne matável.
Em dezembro de 2019, em São Paulo, na comunidade de Paraisópolis, uma ação da Polícia Militar com a justificativa de procurar suspeitos em um baile funk deixou como resultado diversos feridos e nove mortos. Na ocasião, houve denúncia de que os policiais encurralaram e agrediram diversos moradores.
Em novembro de 2015, em Fortaleza, diversos policiais foram acusados de participar daquela que se tornou a maior chacina da capital, a chacina da Messejana. Aqui, o Ministério Público apurou que as ações ocorreram para vingar a morte de um policial em um assalto.
Mas este texto não é para falar apenas da Messejana, de Paraisópolis ou do Jacarezinho, tão tristemente debatido ao longo dos últimos dias, mas sim para falar de polícia. É essa a polícia que queremos? Uma polícia que usa toda a sua letalidade e de forma seletiva? Não, não defendo que a polícia seja tão mortal nas áreas nobres quanto é nas periferias. Defendo que não seja tão mortal. Ponto. Em lugar algum. Polícia não é para matar. O trabalho policial é importante e peça estrutural das políticas públicas de segurança, mas essa segurança, como direito, deve ser para todos, no morro e no asfalto, na periferia e nas áreas nobres.
Porém, há uma grande diferença entre a atuação do estado nos bairros ricos e na periferia.
Essa diferença de tratamento não é uma impressão, mas uma constatação, embasada em números de ações policiais, e mesmo reconhecida pela própria polícia. Recentemente, o comandante da ROTA, de São Paulo, em entrevista, falou abertamente que os seus policiais deveriam tratar as pessoas da periferia e das áreas nobres de formas diferentes.
E as diferenças de tratamento continuam sendo praticadas. Em maio do ano passado, um morador de um condomínio de luxo nem se intimidou por ser gravado enquanto chamava um policial militar de “lixo”, despejando diversos palavrões. Os policiais, como foi noticiado, conseguiram conter e levar o homem para a delegacia, usando força moderada. Não há notícia de uso indevido da força. Só lembrando, foi em condomínio de luxo.
Por esses exemplos, é necessária uma urgente reconstrução de conceitos sobre o papel das forças policiais e da formação do profissional de segurança pública, para que a herança da ditadura e a ideia da polícia como força de repressão sejam deixadas para trás. A polícia, como instituição de estado, precisa ser transparente e, acima de tudo, seguir as normas impostas pelo estado democrático de direito. Agir ao arrepio da lei não é ação policial, mas de pessoas que assim se travestem.
O que aconteceu no Jacarezinho não foi um fato isolado, foi apenas o mais sangrento. Infelizmente, sem uma profunda mudança sobre o papel das forças policiais na segurança pública e um sério debate sobre a falida guerra às drogas, não será o último.
Alex Mourão é professor universitário. Está no Instagram.