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Por que Fortaleza quer violar nossos direitos reprodutivos?

Posicionamento da Prefeitura de Fortaleza coloca em risco evolução de debate sobre direitos reprodutivos
POR Geórgia Oliveira
Ativistas vão às ruas do centro do Rio de Janeiro em marcha pela legalização do aborto (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

“Sou médico, formado há 37 anos e me criei na periferia de Fortaleza. (…) A minha vó parteira, a minha tia parteira. Eu sempre vivi num ambiente muito próximo da medicina.”

“A medicina e a política, pra mim, convergem no cuidar. É cuidar de reduzir desigualdades, de promover justiça social e oportunidade. É a política que vai fazer isso. É cuidar das pessoas. É como a medicina.”

As frases destacadas acima foram parte da propaganda eleitoral do prefeito de Fortaleza, Sarto Nogueira, veiculadas na televisão durante uma campanha que buscava, antes de tudo, apresentar um candidato desconhecido do povo aos eleitores. Sarto passou toda a campanha evocando sua profissão como definidora do seu agir político; ao mostrar o candidato dizendo “procure saber quem é o Sarto”, a propaganda emenda com fotos do político vestido de médico, com um bebê recém-nascido no colo e a legenda “Sarto fez 10 mil partos em Fortaleza”, completando com a informação de que sua especialidade médica é a ginecologia e a obstetrícia.

Essa imagem ruiu de vez na última semana, quando chegou ao conhecimento público a sanção do executivo municipal à Lei 11.159, publicada no Diário Oficial do Município no último dia 09/09. A lei cria um evento chamado “Semana pela Vida”, a ser “comemorado” anualmente de 1º a 7 de outubro na cidade de Fortaleza, e mescla uma pauta supostamente benéfica de integração de idosos, órfãos e cuidados com gestantes e mães à realização de campanhas publicitárias, institucionais e informativas contra o aborto e contra o uso de métodos contraceptivos, abordando os malefícios “médicos e psicológicos” das duas práticas. Sugiro fortemente a leitura da curta, mas extremamente absurda, lei.

O projeto que originou essa lei foi proposto em 2017 pelo vereador Jorginho Pinheiro (PSDB), mas só agora em 2021, na gestão de Sarto, parece ter avançado. Sua página de apresentação no site da Câmara Municipal de Fortaleza define o parlamentar como “bacharel em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor), especialista em Execução Penal e Direito Canônico e membro da Sociedade Brasileira de Canonistas. É casado (…) e é membro consagrado da Comunidade Católica Shalom”. As principais pautas apresentadas pelo vereador são a luta contra o aborto, a prevenção ao suicídio, o apoio à família e o combate à ““““““““““ideologia de gênero”””””””””” (as aspas aqui são por minha conta).

O prefeito declarou que, apesar de ter sancionado a lei, esta supostamente não obriga o poder executivo a realizar campanhas contra o aborto e o uso de métodos contraceptivos, apenas estabelece sua possibilidade, e assegurou (de forma nada reconfortante) que a prefeitura não pretende realizar campanhas dessa natureza. Sarto aparentemente desconhece não apenas o instituto do veto, mas a própria lógica jurídica que passa pela sanção de uma lei. Ao sancionar uma norma, o poder executivo, querendo ou não, se compromete com determinada pauta, além de integrar tais normas no ordenamento jurídico do município. Em outras palavras: que bom que a gestão atual da Prefeitura de Fortaleza não quer executar uma lei que viola direitos reprodutivos das pessoas com útero, mas não sabemos se as próximas gestões terão o mesmo compromisso.

Planejamento familiar e Constituição
Tamanho retrocesso nos faz questionar se as autoridades públicas municipais têm conhecimento do § 7º do artigo 226 da Constituição Federal, que determina que o planejamento familiar é de livre decisão do casal e dos indivíduos e deve ser fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável. Esse artigo também estabelece que cabe ao Estado oferecer apenas recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, sendo vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

Ou seja, a Lei 11.159/2021 viola os princípios definidores do livre exercício dos direitos reprodutivos. Não só isso: viola também os mandamentos de ação estatal baseados na não-coerção e da obrigação de orientar sobre planejamento familiar a partir de bases científicas e educacionais (e não de bases religiosas, como no caso da lei).

Se olharmos efetivamente para o que o conhecimento científico nos apresenta acerca do aborto, veremos que o aborto no Brasil é uma questão de saúde pública que acontece independentemente da criminalização estatal. As mulheres que procuram interromper a gravidez estão em todos os espaços sociais: as que têm recursos financeiros e privilégios raciais e econômicos realizam o procedimento em segurança; aquelas que não dispõem desses recursos abortam de forma insegura e enfrentam a punição penal ou a morte em decorrência disso.

Somente no primeiro semestre de 2020, o SUS realizou 80.948 procedimentos como curetagens e aspirações, necessários após o aborto espontâneo ou provocado, em todo Brasil. Realizou também 1.024 abortos legais, aqueles decorrentes de violência sexual, de risco à vida da gestante e em caso de fetos anencéfalos, aos quais a lei fortalezense também parece se opor, ao determinar campanhas contra todos os tipos de aborto. Esses números, apesar de expressivos, são apenas a superfície do fenômeno, já que a criminalização do aborto e a condenação social à prática impedem muitas mulheres de procurar os serviços públicos. É essa realidade de desamparo e medo que causa prejuízos às mulheres brasileiras.

A importância da informação
O que pode ajudar a evitar gestações indesejadas é a informação esclarecida e o uso adequado de métodos contraceptivos, também condenados pela Lei 11.159/2021. Se a dificuldade de obter orientação e aplicação de métodos contraceptivos, seja pelo SUS, seja pela saúde privada, já é a regra na experiência daquelas que o procuram, imagine como uma campanha publicitária financiada com o orçamento do município pode aumentar a desinformação e a dificuldade de acesso à anticoncepcionais, DIU e outros métodos de contracepção. O prejuízo à saúde e liberdade de escolha das pessoas com útero é certo e temerário.

Se falarmos em educação, é necessário questionar como uma cidade na qual pelo menos nove crianças e adolescentes de até 14 anos foram vítimas de estupro de vulnerável e passaram por procedimentos abortivos no ano de 2020 aprova uma lei contra direitos reprodutivos. Essa é a realidade da maior parte das vítimas de violência sexual no Brasil: o Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostrou que, dos 60.460 casos de estupro registrados pelas autoridades policiais, 73,7% foram cometidos contra vítimas vulneráveis de até 14 anos, e que em 85,2% dos casos o autor da violência era conhecido da vítima.

O que poderia ajudar a mudar essa realidade, mais uma vez de acordo com evidências científicas, é a educação escolar de crianças e adolescentes com base no respeito ao consentimento em qualquer relação social e na identificação de comportamentos que constituem situações de violência sexual. No entanto, tais pautas são atualmente rechaçadas pela abordagem fundamentalista que perpassa a atuação do governo federal e de seus aliados.

Tenho certeza que tudo que eu falei aqui não é nenhuma novidade para o prefeito Sarto. No entanto, resta saber por qual motivo ele sancionou uma lei que vai contra todas as evidências científicas e éticas do seu campo profissional de atuação e que prejudicará o livre exercício de direitos sexuais e reprodutivos das mulheres fortalezenses, impondo um controle patriarcal e arbitrário patrocinado pela estrutura do município sobre os corpos de todas e todos que precisam de métodos contraceptivos e da interrupção voluntária da gravidez para exercer a livre escolha dos seus projetos de vida.

Resta saber: por que a Prefeitura de Fortaleza chancelou a existência de uma semana pela morte e pela violação de direitos das mulheres?

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.