Bemdito

Presente distópico e futuros utópicos

Como as distopias servem para refletir sobre o presente, o futuro e o passado
POR Geórgia Oliveira
Foto: George Kraychyk/Hulu

Como as distopias servem para refletir sobre o presente, o futuro e o passado

Nossos antepassados, que sonharam para nós um futuro com carros voadores, ficariam pelo menos um pouco decepcionados se vissem que o avanço mais visível que nós, do futuro, tivemos é passar o dia inteiro diante das telas. Durante os últimos dois séculos, muitos sonharam por meio da literatura com utopias tecnológicas, mas outros se dedicaram a pensar o oposto (ou pelo menos o diferente): mundos distópicos, como aqueles vistos em Admirável Mundo Novo, 1984 e Fahrenheit 451, clássicos que, mesmo antes da pandemia, já voltavam a se popularizar e agora são ainda mais lidos.

Distopias são marcadas por representarem sociedades destruídas por catástrofes, condições extremas de vida e arranjos sociais opressivos, o que pode parecer um pouco inadequado para escapar de uma realidade que já se assemelha muito a esse colapso. Alguém poderia afirmar, com certa razão, que basta assistir a qualquer telejornal noturno para pensar o que está dando errado e como pode piorar. Mas as metáforas distópicas podem ser extremamente úteis para refletir sobre o presente e o futuro, além de especular sobre outras realidades, principalmente, quando falamos de autoras que pensaram outros mundos para as mulheres.

Octavia E. Butler, Ursula K. Le Guin e Margaret Atwood produziram ficção científica e especulativa num momento em que o gênero dominado por homens, e questões sociais estavam de fora do cânone criado para o gênero literário. O reconhecimento da grandeza de suas obras cresceu ao longo do tempo – até serem consideradas hoje como ícones da cultura pop – porque a relevância dos problemas abordados em suas histórias também se expandiu e, em alguns casos, começou a atravessar a linha tênue que separa o real da ficção para tocar as nossas sociedades.

As distopias permitiram repensar as relações de poder que guiam o status da sociedade em que vivemos. Octavia E. Butler, a dama ficção científica, diz que escolheu escrever sobre poder porque era algo sobre o que sabia muito pouco, enquanto uma mulher negra que viveu a segregação racial.

Ao ser perguntada sobre a utilidade que a ficção científica teria para o povo negro, principalmente quando os escritores desse gênero que se pareciam com ela eram contados nos dedos de uma mão, Octavia reflete: “em seu melhor, a ficção científica estimula a imaginação e a criatividade. Ela conduz leitor e escritor para fora do caminho comum, do caminho restrito que leva ao que ‘todo mundo’ está dizendo, fazendo, pensando – quem quer que seja ‘todo mundo’ esse ano.” (no ensaio Obsessão Positiva, do livro Filhos de Sangue e Outras Histórias). Subvertendo o pensamento de “todo mundo”, principalmente porque quem dita esse senso comum são as preferências brancas, a autora criou uma perspectiva afrofuturista sobre o que pode ser a sociedade e o futuro.

Ursula K Le Guin especulou outros mundos a partir das relações de gênero e classe. Criou em A mão esquerda da escuridão uma civilização na qual não existem papéis fixos de gênero ou discriminação sexual; em Os despossuídos, Ursula desafia a pensar como seria uma sociedade sem propriedade privada e como ela condicionaria até mesmo a fala, afinal, a posse está no que definimos como “meu” ou “minha”.

A pesquisa por trás de suas obras reflete tudo que de revolucionário estava sendo pensado a partir da década de 1960. Em 2014, no seu discurso de agradecimento pelo prêmio na National Book Award, deixou bem claro que as tarefas de escrita e de imaginação são essenciais para a liberdade: “acredito que tempos difíceis estão por vir, quando desejaremos ouvir a voz de escritores que consigam ver alternativas ao que vivemos hoje e possam enxergar além desta nossa sociedade (…) Precisaremos de escritores que possam se lembrar da liberdade. Poetas, visionários — os realistas de uma realidade mais ampla.”

Um livro escrito por Margaret Atwood e lançado em 1985 tornou-se um fenômeno de vendas 30 anos depois do seu lançamento. Tudo porque a ascensão de governos conservadores, com uma agenda de controle sobre direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, fizeram-nos vislumbrar uma sociedade em que Gilead não seria mais tão ficcional assim.

Ao finalizar a leitura de O Conto da Aia, parece que saímos ressabiadas e atentas a qualquer ameaça porque, como deixa claro a autora, a distopia para algumas de nós pode ser a utopia para muitas outras pessoas. Em entrevista recente, Margaret aposta que o século XXI será marcado por utopias, porque “precisaremos imaginar como salvar o mundo”.

Se toda distopia ou utopia fala do presente a partir do futuro, como pensar o mundo transformado pela nossa experiência durante esse último ano? Ray Bradbury já dizia que a obra de um escritor é feita daquilo que ele teme quando apaga a luz à noite, logo, não faltarão temas para os escritores e, principalmente, para as escritoras de ficção científica e de distopia das próximas décadas.

Escolhi falar hoje sobre literatura porque ela é uma forma de escape, mas é também uma ferramenta política de reflexão e revolução. Em um mundo e um tempo nos quais não podemos mais abstrair o que está acontecendo, as distopias nos dão a possibilidade de escapismo sem alienação total, sem parar de imaginar sobre os efeitos do que vivemos e das escolhas que fazemos hoje.

De vez em quando, divago um pouco sobre a violência no futuro. Como ela vai existir, se vai se existir, como vai se expressar, quais serão os mecanismos de controle que os próximos seres humanos e Estados vão utilizar, como ela vai atingir especificamente populações já oprimidas, até mesmo se ainda vão existir feminicídios no futuro. 

Quando leio sobre o uso de sistemas de reconhecimento facial, segurança de dados, stalking, uso de inteligência artificial, robôs policiais, sistema CRISPR e tantos outros temas que poderiam ter sido facilmente tratados por obras de ficção científica da década de 1980, mas que agora batem à nossa porta no presente, penso que precisamos parar.

Não me refiro a parar o desenvolvimento tecnológico e científico, mas simplesmente parar um pouco e pensar como vai ser o nosso futuro com essas ferramentas; imaginar como será a vida humana mediada totalmente por mecanismos não humanos; conjecturar como isso vai impactar as nossas relações políticas, sociais e econômicas e, ainda, as relações com a ciência e a tecnologia; e como vai afetar a vida de quem for o alvo dessas ferramentas.

Se a nossa realidade já parece distópica o bastante, e cada vez mais saída de uma obra de ficção científica, é preciso utilizar todas as nossas ferramentas criativas para pensar outras formas de lidar com os problemas que temos hoje e antecipar aqueles que virão amanhã.

Geórgia Oliveira

Pesquisadora em violência de gênero, é mestra em Direito pela UFC, professora universitária e atua com divulgação científica em pesquisa jurídica no projeto Pesquisa e Direito.