Bemdito

Pudor da carne

Quando o sexo de Anne Frank incomoda mais que o sangue de Lázaro
POR Jáder Santana

Junho chega ao fim com dois silêncios, o de Lázaro e o de Wizard. Mas começou com a voz queixosa de noventa pais de alunos da Escola Móbile, em São Paulo, que se manifestaram contra a indicação de leitura “erótica” recebida por seus filhos com idade entre 11 e 12 anos. O livro, uma versão em quadrinhos de O diário de Anne Frank. Entre o barulho de uns e a mudez de outros, o Brasil reforça os traços de sua nova cara, conservadora, corrupta, dissimulada e assassina. 

Do caso Lázaro, outros colegas do Bemdito já falaram, aqui e aqui. O caso Wizard, tão ridículo, não merece análise aprofundada. O último artigo da professora Paula Brandão, publicado no início da semana, me fez voltar a pensar no caso da Escola Móbile. Paula escreve sobre “a valência diferencial dos sexos nos rituais masculinos e femininos” e reflete sobre a simbologia da menarca como importante elemento na construção da identidade da mulher. Esse primeiro ciclo menstrual, explica a autora, estabelece silenciamentos, impõe comportamentos e gera sofrimentos físicos e psíquicos. Os pais e a sociedade exigem da adolescente significativas mudanças em sua conduta. 

Os “aspectos eróticos da narrativa”, citados em carta pelos noventa pais da Escola Móbile, referem-se a trechos em que uma Anne Frank recém-entrada à adolescência divaga sobre sua anatomia íntima. “The hole is so small I can hardly imagine how a man could get in there“. O buraco é tão pequeno que eu mal posso imaginar como um homem poderia entrar lá. Em outro trecho, a garota revela sua admiração pelos corpos femininos. “Every time I see a female nude, I go into ecstasy”. Sempre que eu vejo uma mulher nua, eu entro em êxtase. Para os noventa pais, são trechos que causam constrangimento. 

O mesmo constrangimento gerado pelo sangue da primeira menstruação. O pudor da carne. Noventa pais que preferem não expor seus filhos à curiosidade biológica, que escolhem trancafiá-los em uma perigosa bolha de desinformação e preconceito. O pai de Anne, Otto Frank, havia retirado esses trechos das primeiras edições do diário, considerando-os sensíveis. Com o tempo, foram sendo incorporados ao texto final, dando novas dimensões às pequenas descobertas de Anne sobre seu corpo e emoções em meio a um cenário de dor e morte. 

Como escreveu o psicanalista William Zeytounlian, em excelente artigo publicado no Nexo, esse silenciamento – que, quando ampliado para além do núcleo familiar, traduz-se em uma política de negacionismo, desinformação e intolerância -, privou Anne Frank, uma garota “de uma auto honestidade espantosa e inteligente”, de ter um amor, um sexo e uma vida. É o mesmo silenciamento que, como bem colocou Paula em seu artigo, retira a menina menstruada do convívio com outras crianças, das brincadeiras de rua, colocando-a dentro de casa, submetida a uma série de novas regras e restrições. “Segura sua cabrita que meu bode está solto.”

Me vem uma dúvida: os pais que se constrangem com a versão completa dos diários de Anne Frank – aprovada pela própria Fundação Anne Frank e adotada pelo Unicef -, também se preocupam com a exposição de seus filhos aos horrores do Holocausto? Por que suas crianças podem ser expostas à morte, de judeus e Lázaros, e às arminhas nas mãos, mas precisam ter as vistas protegidas de representações sinceras do corpo e do sexo? O que move esse pudor? O que o justifica? Por que somos incentivados a tocar o corpo e sentir as chagas de um Cristo nu e crucificado, mas sentimos repulsa diante da imagem despida de um artista em performance?

No Brasil de 2021, um país de conceitos invertidos e morais relativas, a família é semente e espelho da sociedade. Os pais que se incomodam com a exposição dos filhos à nudez dos livros e das artes são os mesmos que fecham os olhos para o que suas crianças acessam a partir de seus celulares. Rejeitam o sexo, toleram o ódio. Enterram o corpo se o filho comete um assassinato, mas o expulsam de casa se o encontram beijando alguém do mesmo sexo.

Jáder Santana

Editor executivo do Bemdito, é jornalista e trabalhou como repórter e editor de cultura do jornal O Povo, onde também integrou o Núcleo de Reportagens Especiais. É curador da Festa Literária do Ceará e mestrando em Estudos da Tradução pela UFC.