Bemdito

Quando tudo desmorona

Para Philip Roth, se existe sentido para a vida, ele precisa ser inventado e não há garantia de que seja uma invenção boa o suficiente
POR Camille C. Branco
Foto: Bob Peterson//Time Life Pictures/Getty Images

Qualquer pessoa com níveis mínimos de intimidade comigo sabe que sou uma leitora passional de Philip Roth. Me interesso por sua propensão – tenho certeza que o termo mais apropriado é obsessão – por abordar assuntos sobre os quais ninguém gosta muito de falar. Se causar constrangimento na mesa de jantar, provavelmente o tema tem a atenção de Roth. Ele parecia querer pôr fogo em tudo, inclusive (talvez principalmente) em si.

Quando vivo, foi um escritor bastante irritado, cínico e debochado, traços que reverberam em seu estilo: a prosa de Roth é enxuta, sem muito floreio lírico, avessa à poetização excessiva. Mas com uma marca singular de sagacidade, certa capacidade de radiografar a emoção, a angústia humana, que consagrou sua voz autoral, ainda que esta voz tenha sofrido alguma modulação ao longo dos muitos anos de sua atividade artística.

É neste ponto que a obra de Roth se complexifica: ao dar tanta atenção à carniça da humanidade, ele acabou por desenvolver uma espécie de sensibilidade difícil, pouco opulenta, mas significativa – criou tipos humanos que, de tão grotescos, tão coitados, tão ridículos, despertam compaixão no leitor.

Roth tornou-se conhecido por escrever um romance sobre um judeu de meia idade, masturbador compulsivo, com problemas com a mãe. Trata-se da história de um homem que, ironicamente, quase não conheceu o prazer, tampouco algum sentido de uma vida sem culpa e dotada de redenção. Eis o arco narrativo de “O complexo de Portnoy”.

Porém, em se tratando deste texto, volto minha atenção para um livro curto, bem menos famoso, que Roth batizou como “A humilhação”. A obra lança seu olhar sobre os derradeiros anos de Simon Axler, um dos maiores atores de teatro clássico dos Estados Unidos, que um dia, de forma repentina, se vê imerso naquilo que seu psiquiatra qualifica como “pesadelo universal”: seu talento morreu. Menino prodígio quando jovem, gênio respeitado quando adulto, lenda dos palcos quando idoso, o que fazer de si mesmo quando você é incapaz de repetir aquilo que deu sentido à sua vida inteira? Mais do que sentido, aquilo que concedeu a você respeitabilidade, senso pessoal de realização e alguma vaidade?

O que torna a experiência de Axler tão perturbadora, além de sua aparente aleatoriedade, é o fato de que ele sente que, mesmo ao seu sofrimento, falta autenticidade. E que encena mal a própria tragédia que se tornou sua vida. Axler sofre, sofre muito, mas nem por isso consegue se matar. Ele se dá conta de que o suicídio é mais do que um tema transversal e admirado no teatro. Parece ser uma marca constitutiva do próprio gênero. E até mesmo diante desta final atuação, Axler está impotente.

Interna-se primeiro em uma clínica psiquiátrica, onde se dá conta do quanto sua virilidade decaiu, em meio a tantas pessoas fragilizadas. Depois de sair, se envolve com uma mulher lésbica, vinte anos mais nova, que assume se tratar de um relacionamento estranho e confuso até para os dois, mas propõe que corram o risco. A glória dos palcos fica cada vez mais obscurecida pela mesquinharia diária.

Observar um gambá e pensar que é a versão animal de si mesmo, trocar o papel de parede, aprender como manejar um consolo, pensar em roupas e cortes de cabelo para a namorada passam a ser parte do cotidiano miserável de Axler, outrora um fabricante de grandezas na voz de Próspero ou Macbeth. É um chamado de humildade apavorante: se aconteceu com Axler, depois de uma vida inteira, pode muito bem acontecer com você. Agora mesmo.

Considero que “A humilhação” pode ser um bom primeiro livro de contato com Roth, em primeiro lugar, por seu efeito literário: veloz, inarredável, acachapante. Em segundo lugar, por considerar que Roth é um escritor imperdoavelmente mal lido. Muitas vezes acusado de traidor da própria ascendência, por retratar a complexidade e a baixeza humana em seus personagens judeus, a crítica mais em voga em relação aos livros de Roth hoje é a de que ele seria um misógino, uma vez que se ocupou de retratar o que se convencionou chamar de masculinidade tóxica.

Essa interpretação me parece o efeito de uma espécie de moralismo comezinho de leitores incapazes de reconhecer o escárnio – e a dramaticidade concomitante ao escárnio – das construções narrativas de Roth. Se é verdade que a masculinidade é o espectro predominante de interesse do autor (apenas uma de suas protagonistas foi uma mulher), é precisamente por sua decrepitude. Roth não faz apologias do masculino. Ele inventa verdadeiras paródias do masculino. Não o interessa tanto o fálico, e sim a falência.

Pode-se argumentar, é evidente, que eu deveria, quem sabe, voltar meus interesses literários para um autor um pouco mais, digamos, animador que Roth. Mas é como pontua uma das personagens de “A humilhação”: “é perda de tempo uma pessoa de fora tentar convencer você que você não devia gostar da coisa que você acorda todos os dias querendo, a coisa que está tirando você de um cotidiano maçante”. Roth produz esse deslocamento, para mim. Com honestidade, informa que, se existe sentido para a vida, ele precisa ser inventado e não há garantia de que seja uma invenção boa o suficiente. Conta que a sobrevivência muitas vezes não possui nada de heroico, pelo contrário. Pode facilmente ser uma tarefa patética, feia, sem sofisticação. E, ainda assim, parece haver algo que nos faz, algumas vezes, insistir na vida.

Roth não conta o que é. Mas nos provoca com a ideia. É por isso que me proponho ao oposto da atividade que a personagem de “A humilhação” critica. Não gostaria de convencer o leitor a não gostar do que o tira de um cotidiano menos maçante. Gostaria de convidá-lo, pelo contrário, a conhecer algo com este potencial, por meio da literatura de Roth. Quem sabe goste. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.