Quem aperta o gatilho?
Na semana passada, escrevi neste espaço um texto sobre o uso de câmeras corporais com gravação ininterrupta pela Polícia Militar do estado de São Paulo e os resultados iniciais dessa política de segurança pública. Os resultados, apesar de ainda iniciais, como falamos, já apontam para uma nova perspectiva, com redução de letalidade policial, entre outros ganhos.
Logo que o texto foi publicado, recebi algumas mensagens e comentários em outros perfis que repostaram o escrito. Também recebi mensagens de amigos e amigas que são policiais. Em geral, divido a atenção recebida em três blocos. No primeiro, ocorreu uma troca de ideias com profissionais de segurança pública e interessados no tema, que inclusive apontaram que as câmeras não apenas podem reduzir a letalidade policial, inibindo ações criminosas de pessoas que se travestem de profissionais, como também protege o policial, policial de verdade, de falsas acusações. E o debate foi muito bacana.
O segundo bloco, bem reduzido (graças), foi marcado por mensagens sem muito conteúdo. Mensagens com termos como “defensor de bandido”, “você não é policial, então não sabe o que é o trabalho”, “especialista é só quem é policial” e o clássico “bandido bom é bandido morto”. Não vou abrir aqui maiores espaços, mas as reações mostravam um traço único de seus autores: nenhum havia lido o texto. Típico.
O terceiro bloco me cobrou escrever sobre a visão dos policiais. Assumi o desafio e fui em campo. Logo de cara, notei que em geral os policiais, policiais de verdade, não se incomodam com as câmeras, objeto principal do texto da semana passada. Na verdade, eles entendem o dispositivo como um importante meio de proteção de seu trabalho. Daí, resolvi escrever mais sobre o tema.
O trabalho policial é uma atividade árdua e muito difícil. Não é preciso ser nenhum grande entendedor para verificar as condições precárias na maioria das forças policiais do País. Também, quem pesquisa o tema, os experts na matéria, corroboram com essa ideia.
Essa precariedade se revela nos dados, como o aumento de mais de 19% no número de policiais civis e militares vítimas de CVLI – termo técnico para designar crimes violentos, letais e intencionais -, entre o primeiro semestre de 2019 e o mesmo período de 2020, Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020). Apesar da tendência de queda, de números gerais, de crimes violentos letais intencionais.
No mesmo estudo, é possível ver que, apesar de os números de policiais militares mortos em confronto em serviço terem diminuído entre 2018 e 2019, as mortes desses mesmos profissionais fora de serviço seguem assombrando as estatísticas. O número de policiais militares mortos em confronto ou por lesão não natural, fora de serviço, no ano de 2019, chega a ser 80% maior do que as mortes em serviço.
E esse trabalho realizado sob constante pressão, em face de um quadro cada vez mais violento, acaba também por cobrar da saúde do policial, sob outros aspectos, como, por exemplo, os alarmantes números de suicídios. Mesmo apontando pequena queda entre 2018 e 2019, a taxa de suicídio de policiais é significativamente maior do que a taxa na população em geral. Em 2019 a taxa de suicídio entre policiais (civis e militares) foi de 17,4 por 100 mil, enquanto a mesma taxa na população em geral foi de 6 por 100 mil.
A situação é tão grave que, morrem mais policiais por suicídio, todo ano, do que em confrontos em serviço. Esses dados deveriam ser um forte indicador para a urgente necessidade de implantação de políticas públicas efetivas de atenção a esses profissionais, além de uma forte atuação nas causas desse quadro dramático.
Já debatemos neste espaço, em outras ocasiões, sobre violência policial e seletividade, encarceramento da população negra e periférica e erros judiciais que agravam o sistema de justiça criminal. Em todos eles, a característica dos excluídos é ser negro, jovem e pobre.
Pois bem, como os dados apresentados nesses textos se relacionam com o tema de hoje? A resposta é: o perfil dos matáveis/morríveis. De um lado e do outro do cano da arma.
Sim, ao passo que o sistema de justiça criminal é branco e central, exclui os negros e periféricos em todas as suas dimensões. Tanto assim o é que o perfil das pessoas mortas pelas armas da polícia é muito parecido com o perfil dos policiais mortos. São homens e negros. Negros. Mais de 65% dos policiais mortos são negros – e, ao todo, apenas 34% dos policiais são negros, de acordo com o Perfil dos Profissionais de Segurança Pública, do Anuário. A diferença ocorre apenas quanto à idade: o policial que morre tem alguns anos a mais.
Portanto, falar de segurança pública, seja sob qual perspectiva for, é, antes de tudo, falar de um país desigual, preconceituoso e que já escolheu quem morre e quem vive. O policial, nessa equação, acaba sendo usado como instrumento de políticas falidas, como a guerra às drogas. Acabam morrendo, jovens e negros. Com e sem farda.
Mas será que quem aperta mesmo o gatilho, pelo menos em uma perspectiva institucional, é apenas o policial que antes mesmo de entrar na academia é mergulhado em um ideal de herói, dos bons contra os maus (prometo aqui um texto sobre o tema, mais pra frente) e em um ambiente de violência institucionalizada? Será que o policial que atua diretamente em situações limítrofes, conta com apoio institucional?
Não chamo de apoio institucional viaturas e armas. Chamo de apoio institucional uma política pública que de fato entenda o fenômeno criminal como ele é, social, com raízes muito mais profundas do que batidas policiais em favelas podem revelar. Será que esse policial é treinado para atuar dentro do Estado democrático de direito? Será que o poder quer o policial atuando dentro do Estado democrático de direito ou o quer como força de segurança para proteção e manutenção?
Será que a preocupação do homem branco que mora na Aldeota é de fato com a segurança pública ou com a polícia que lhe é dócil diante de suas infrações, mas violenta contra os excluídos?