Bemdito

Quem eu sou já não é: a transformação permanente do ser

Uma reflexão sobre as mudanças que se seguem (e nos transformam a identidade) no curso da vida
POR Cláudio Sena

Ao nascer somos inevitavelmente convocados à unicidade. Pais, mães, tias, alguém apressa-se em definir quem seremos pelos próximos anos de vida. Sapecam-nos imediatamente um nome. Em alguns, nem isso (vide o livro da jornalista Fernanda da Escóssia, “Invisíveis: uma etnografia sobre brasileiros sem documento” da Editora FGV, que não li ainda, mas conheço a pesquisa).

A identidade, o papel, o carimbo, a certidão do cartório e a decisão dos outros tentam nos definir por meio de uma combinação de letras, depois, números, dos quais dependeremos para o resto da vida. Mas a gente, em geral, cresce e muda. Achei por bem retirar da sentença o “reproduz e morre”. 

A verdade é que letras e números não dão conta. O sociólogo Bernard Lahire, defendendo a perspectiva de um “homem plural”, chega a classificar tais documentos que tentam evocar e classificar a totalidade do indivíduo como “abstrações unificadoras” em relação à diversidade da realidade social. Para ele, são sinais fracos e frágeis como elementos unificadores. 

O indivíduo torna-se um receptáculo de ações, um constructo social em permanente mutação, por mais que muitos combatam isso. As condições sócio-históricas de cada um de nós inevitavelmente vão acabar por nos moldar sobrepujando-se em relação aos papéis ou de identificações digitais. É a hipótese que lança Lahire:

“Enquanto criança, adolescente, pai de família, namorado, jogador de futebol, colecionador de selos, partidário político, ou operário de sua empresa, o mesmo corpo biológico será designado, pelos mesmos nome e sobrenome. É claro que a abstração chega a tomar corpo, sustentada pela evidência da unidade biológica do corpo. Socialmente, porém, o mesmo corpo passa por estados diferentes e é fatalmente portador de esquemas de ação ou hábitos heterogêneos e até contraditórios.”

No centro de tudo estariam os efeitos poderosos das socializações. A experiência de ir ao cinema pela primeira vez, sozinho ou com o amor da vida. A decepção amorosa. O encantamento com o poder de um cargo profissional. As relações de afeto com amigos distantes que são reforçadas em um encontro anual. As descobertas em nós mesmos e nos outros. As viagens, as permanências, os deslocamentos inesperados. Os sentimentos despertados ou misteriosamente apaziguados até a inexistência. Os acidentes, as conquistas, as doenças, as formações escolares e acadêmicas, ou seja, a vida como ela é. Tudo isso vai nos definindo e nos redefinindo. 

Para o filósofo Michel Foucault e em suas ideias as quais tantos curiosos recorrem para compreensão do ser humano, a unicidade é um desafio. Ele mesmo recusa classificações para si, com notas de ironia inclusive:

“Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo […] não, não, eu não estou onde você me espreita, mas aqui de onde o observo rindo.”

Ainda vai? 

Aposto na convivência como melhor dos métodos para tal compreensão daqueles que nos rodeiam. É no durante que podemos avaliar melhor as estabilidades e as transformações que se operam no seres, além de aprendermos a conviver com as diferenças que se apresentam constantes. Depois de sociologia e de filosofia, permita-me terminar o texto com a sabedoria popular de pensador desconhecido: “É no balanço da carroça que as melancias se ajeitam.”

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.