Bemdito

Quem tem medo de Marguerite Duras?

Uma reflexão sobre “O amante”, romance mais famoso da autora, uma mistura tortuosa e angustiada entre ficção e autobiografia
POR Camille C. Branco

“Escrever. Não posso. Ninguém pode. É preciso dizer: não se pode. E se escreve.”

(Marguerite Duras/ Escrever)

         Começo este texto respondendo, de antemão, à pergunta que dá título a ele: Eu tenho medo de Marguerite Duras. Tanto isto é verdadeiro que, embora eu tenha lido tudo o que me caiu nas mãos escrito por ela com paixão fanática, até o dia de hoje jamais escrevi sobre sua obra. As palavras de Duras sempre me conduziram a uma espécie de estarrecimento, algo como um enigma sentimental inexprimível de tão aterrorizante. Não que Duras seja obscurantista ou muito difícil em sua literatura, pelo contrário. É precisamente pela radicalidade de sua nitidez que sinto medo dela.

         De origem francesa, Duras, quando em vida, foi vencedora do Prêmio Goncourt. Escreveu mais de cinquenta livros e fez experimentações não somente no romance, mas na poesia, na dramaturgia e no cinema. Tudo em que ela pôs as mãos, e a que tive acesso, me pareceu desconcertante. Não só a mim: Lacan, o paradigmático psicanalista francês, escreveu longamente sobre ela, arrebatado pelo manejo que a autora fez da linguagem. Longe de tentar esgotar a extensão de sua obra, o exercício de coragem que gostaria de fazer é o de refletir um pouco sobre o romance mais famoso da autora, uma mistura tortuosa e angustiada entre ficção e autobiografia intitulada “O amante”.

         Pus as mãos neste livro por acaso. Minha edição é antiga, foi comprada antes do meu nascimento – em 1987, pela data abaixo da assinatura do meu avô. Foi mesmo um acidente, porque o livro, além de bastante curto, contém o título e o nome da autora apenas na lombada. Capa e contracapa estão vazias, em marrom. Quando o apanhei, não havia nenhuma página sublinhada, então não posso afirmar com segurança que meu avô leu o texto. Foi a primeira página que me capturou sem remédio: a narradora conta que, ainda na juventude, seu rosto sofreu uma repentina alteração. Bruscamente, ela envelheceu e suas feições anteriores foram desfeitas. É esta imagem de um rosto em ruínas ainda na juventude que Duras evoca para proferir uma de suas várias sentenças belas e brutais: “Muito cedo na minha vida ficou tarde demais”.

         O livro fala da relação entre uma jovem francesa e um rico comerciante chinês na Indochina pré-guerra. A menina, ainda em idade escolar na ocasião do envolvimento, se volta ao passado para refletir, sem uma gota de autopiedade, sobre os limites entre desejo e violência, sobre as correlações agônicas entre sexualidade e interracialidade, sobre a descoberta do erótico por uma menina em face de um adulto. A narradora escrutina esta experiência com a frieza descritiva de um cirurgião, sem entregar nenhuma solução ou mesmo condenação imediata para o leitor. Duras recusa a sanha punitiva tão própria e simplificadora da retórica ocidental e prefere retratar os dois personagens pelas brechas de suas vulnerabilidades. Ambos, cada um à sua maneira, são malditos, atormentados, infelizes e equilibram-se nas linhas frágeis entre o nojo e o êxtase.

         De quebra, a autora realiza uma profunda reflexão sobre as vigas que sustentam uma família infeliz. A narradora diz que começou a escrever em um ambiente que a obrigava ao pudor, em que escrever era moral. Ela conta que teve a sorte de ter uma mãe desesperada de um desespero tão puro, que nenhuma alegria de viver era capaz de afastá-lo de todo. Seus irmãos eram envenenados por uma agressividade corrosiva e ameaçadora. Havia amor e havia ódio, simultaneamente compartilhados. E silêncio, um lento trabalho de silêncio, por toda a vida. É nesse contexto mortificado que a narradora declara “jamais fiz coisa alguma que não fosse esperar diante da porta fechada”. Czeslaw Milosz, o escritor polonês, defendeu que “quando nasce um escritor em uma família, a família está acabada”. Em se tratando de Duras, é difícil discernir o que veio primeiro: a destruição familiar ou a escrita.

         Em reflexão sobre o ato de escrever, Duras defende que escrever cria um espaço de solidão que separa o escritor das pessoas em torno dele. Um escritor está sozinho, mesmo quando tem um amante. E este tipo de solidão, diz ela, significa a morte ou o livro. É um terreno acidentado e perigoso. Somente quando se está perdido, quando não há mais o que escrever, mais o que perder, é que se escreve. Não se escreve apesar do desespero, mas com ele, em uma noite fechada, em face de um desconhecido. Duras diz que desaprendeu a mentir porque sua mãe certa vez lhe disse que crianças mentirosas acabavam sendo mortas. Lendo as verdades radicais contidas em sua obra, as verdades assustadoras das quais ela não se esquiva, o leitor compreende a veracidade desta afirmação.         Certa vez, a poeta Adrienne Rich escreveu um ensaio sobre a também poeta Anne Sexton, que reflete, entre outras coisas, sobre o suicídio de Anne. Rich pontua que vivemos em uma sociedade em que o único gesto de violência concedido às mulheres é aquele praticado contra si mesmas. Por isso, Rich ao mesmo tempo compreende e lamenta a quantidade de escritoras suicidas que seguimos empilhando. Duras não se matou, nem tampouco recusou a violência. Ela a inoculou, como uma inundação, na página em branco. Imagino Marguerite Duras atravessando as palavras com uma faca entre os dentes, não aceitando fazer literatura inofensiva, literatura sem mal. Creio que esse tipo de selvageria e fúria é o que segue assombrando a mim, e a todos os seus leitores.

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.