Bemdito

Quem vai bancar a mídia independente?

Se a situação do jornalismo hegemônico está difícil, imagine os projetos alternativos
POR Rogério Christofoletti

O jornalismo é dessas atividades que vivem um dilema permanente entre sua função social e suas carências para sobreviver. Precisa insistir para continuar prestando um serviço, mas isso muitas vezes colide com as pressões que o sistema capitalista impõe a pessoas e a organizações. Se fôssemos muito rigorosos, chegaríamos à conclusão que o jornalismo não é um negócio sustentável economicamente: afinal, o resultado de seu trabalho pode contrariar os interesses de anunciantes ou patrocinadores que desistiriam de investir em algo que traz desgastes e dissabores.

Isso acontece porque o resultado do jornalismo é algo essencial: a informação. E ter informação pode dar alguma vantagem adicional a alguém numa disputa, por exemplo. Mas ter informação pode também ser uma condição de sobreviver, de se manter num mercado, de ter condições mínimas de dignidade.

Não é só com o jornalismo. O mesmo acontece com a Medicina, o Direito ou a Educação. Seus “produtos” são saúde e bem-estar, equilíbrio e justiça, conhecimento e emancipação. São “coisas” importantes para a vida de qualquer pessoa, mas elas têm preço? No sistema em que vivemos, têm, são constantemente compreendidas como mercadorias e, por essa razão, custam dinheiro. Não deveriam, eu sei, eu sei, mas são as contradições que sustentam e desafiam o sistema e o nosso modo de vida.

No caso do jornalismo, a batalha diária pela sobrevivência implica em produzir notícias e outros conteúdos, distribuí-los para um público determinado e convencer alguém a pagar as custas desse processo. As despesas são com salários e honorários de jornalistas, investimentos em sistemas e equipamentos, gastos com infraestrutura, deslocamento, energia, internet, e lucro.

Durante décadas, essa fatura era dividida entre o público e os anunciantes. Em algumas situações, como nas emissoras de rádio e TV abertas, a conta era paga exclusivamente pelos anunciantes pois eles estavam de olho na audiência, na atenção que as pessoas poderiam dispensar para suas marcas, produtos e serviços. Funcionou por um tempo, mas há uns 15 anos, a situação complicou. As big techs não só desviaram o curso do rio do dinheiro – que antes fluía sem muitos intermediários -, como também construíram eclusas, diques, sumidouros e outros entraves. A atenção passou a ser muito mais disputada, fragmentando-se de forma inédita. O jornalismo perdeu a condição privilegiada de arauto das novidades que antes tinha nas sociedades.

Nunca foi muito fácil para o jornalismo se manter, afinal, porque quando é exercido de forma crítica, ele constrange, denuncia, critica, fiscaliza… atrapalha! E se já era desafiador equilibrar os pratos no jornalismo industrial, imagine com a virada de mesa radical que a internet provocou? Agora, imagine como ficou para quem ousa fazer um jornalismo que ofereça outras narrativas, outras perspectivas ou outros enfoques. Sim, o jornalismo alternativo e/ou independente sofre ainda mais por não ter a musculatura que tem o jornalismo hegemônico e as ligações perigosas que ele rotineiramente estabelece com governos, empresas, igrejas e poderosos em geral. Mas esses limites não são só as suas fraquezas, mas são também seus contornos e modo de existir.

No domingo passado, participei de um debate no Fala!, o festival de comunicação, culturas e jornalismo de causas. O evento é uma iniciativa de quatro mídias independentes – Marco Zero Conteúdo, Alma Preta, Ponte Jornalismo e 1Papo Reto – e reuniu gente do Brasil inteiro para falar sobre diversidade, pluralismo, independência e subsistência do jornalismo. O debate do qual falei tinha um ponto de partida complexo, mas inadiável: quem vai financiar a mídia independente no país?

Dani Moura, editora-chefe do Maré de Notícias, por exemplo, contou parte do que vem sendo feito no maior complexo de favelas do Rio de Janeiro: um projeto de jornalismo que reúne um jornal impresso que é distribuído para os 47 mil domicílios da comunidade, um dinâmico portal de notícias, e um conjunto de ações que articulam informação, pertencimento, cidadania e dignidade.

Elaine Silva, que é sócia-diretora do Alma Preta, apresentou a Black Adnetwork, uma rede para aproximar veículos de mídia e influenciadores negros das grandes marcas, gerando sustentabilidade jornalística, auto-reconhecimento no meio publicitário e relacionamento saudável e plural.

Para além dessas ações altamente inspiradoras, há vários caminhos para viabilizar o jornalismo de causas, o jornalismo que opera nas franjas do sistema. Rosenildo Ferreira, editor de 1Papo Reto, lembrou da necessidade de farejar oportunidades em editais públicos (inclusive de fomento à cultura), de prospectar verbas de organismos internacionais e de enxergar possibilidades de trabalho colaborativo em rede, coordenando ações e buscando resultados comuns.

Também penso que há duas frentes que não podem ser desconsideradas: convencer o público a pagar parte da conta e disputar verbas públicas locais.

Tomo como base dois dados preciosos para a compreensão da paisagem de oportunidades atuais. Quase dois terços das cidades brasileiras não têm nenhum meio jornalístico local. De acordo com o Atlas da Notícia, são 62% dos municípios. Neles, moram quase um quinto dos brasileiros: 18% da população, algo em torno de 37 milhões de pessoas. Esses dados apontam para os desertos de notícia, nome dado às localidades que não dispõem de veículos que oferecem noticiário local, isolando ainda mais as populações das tomadas de decisão que lhes afetam diretamente.

Um deserto de notícia é uma ferida no fluxo de informações, mas também uma  vitrine não explorada, uma oportunidade. E como é que se combatem esses desertos? Plantando mídia e regando o jornalismo local. E é aí que os independentes podem assumir um papel essencial, orgânico e estimulador da vida comunitária nessas localidades.

É verdade que convencer o público a pagar parte dos custos da informação não é fácil já que alguns meios operam em mercados muito carentes, e outras parcelas estão mal acostumadas pelas big techs com uma ilusória gratuidade na internet. Entretanto, insistir que o público também arque com o jornalismo traz uma razão adicional para que ele se envolva com os veículos que ajuda a sustentar. Não é só a lógica do pagante, mas ela não pode ser desprezada. Mais do que isso, convencer o público a pagar ajuda a estreitar laços entre quem produz e quem consome notícias. A mídia independente precisa refazer pactos com sua audiência, reforçando dinâmicas de pertencimento e participação, o que vai resultar em frutos como uma maior confiança e uma relação mais duradoura.

Já o segundo caminho que arrisco apontar tem a ver com o jornalismo independente disputar verbas públicas locais com veículos já estabelecidos. De forma prática, significa mapear as verbas que as prefeituras, as empresas de serviços públicos e as câmaras municipais destinam para publicidade, conhecer os mecanismos de distribuição desses recursos e incidir para alterar essas regras, democratizando esse dinheiro. Significa, portanto, mapear as oportunidades locais e gestionar para criar condições de um novo mercado de mídias. Já pensou pressionar para que haja mais transparência na divisão do bolo? Já imaginou pressionar para apresentarem um projeto de lei redefinindo os critérios de repasse dessa verba? 

Requer organização dos veículos independentes, articulação política, empenho, energia, tempo e paciência. Parece muita coisa, e é. Se isso acontecer, será a primeira vez que o jornalismo independente vai sentar à mesa não só pra jogar, mas também pra rediscutir as regras do jogo.

Rogério Christofoletti

Professor de Jornalismo da UFSC, é um dos criadores do Observatório de Ética Jornalística (objETHOS).