“Sou dessas mulheres que só dizem sim?”
O hiperconfinamento da pandemia provou que os relacionamentos estáveis são explicados por algo além da interação sexual e do desejo
Paula Brandão
paulafbam@gmail.com
Na relatoria da vida na pandemia, falta o ar para as furtividades do amor. Os grandes romances modernos que inspiraram a nossa educação emocional ocorreram no cruzar de vidas nas ruas, numa troca de olhares no café, no lampejo de felicidade de uma gargalhada numa mesa de bar, até no dispersar das brumas de um dia frio na solidão das multidões. Ítalo Calvino, em Os nossos antepassados, diz que tem um jeito próprio de escrever suas histórias, um certo élan, mas que elas são contadas sempre “ao ar livre e em lugares públicos, por exemplo, uma estação, com aquela dose de relações humanas entre pessoas que se encontram por acaso.” Agora confinadas, estamos condenadas ao esperado tédio, ao amiudado de cada dia?
Os “beijos com a boca de café”, as aflições do cotidiano, o lock e o down, como diz a psicanalista Vera Iaconelli, significando presas e tristes, faz com que as mulheres em relacionamento estável (e naturalmente, os homens) suspirem ao ver a fotografia The Kiss, de Alfred Eisenstaedt, 1945, ainda que estejam mais próximas da nostálgica tela Os Amantes, de René Magritte. Dando continuidade à segunda parte da pesquisa que fiz na pandemia com fortalezenses casadas, venho falar sobre cansaço doméstico e sexualidade na pandemia.
A tensão se deve ao fato de um casal não ser apenas dois sujeitos em interação recíproca, mas uma síntese de múltiplas formas de sociabilidade constituídas por ambos, seja com as relações de trabalho fora de casa, com os encontros com amigos, parentes etc. O fato de estarem só os dois na maior parte do tempo modificou consideravelmente essa dinâmica. Na minha pesquisa, 47,8% das mulheres casadas responderam que não têm vontade de fazer sexo na pandemia; 13,8% disseram que era cansativo conviver com o marido o dia todo, dentro de casa; houve em menor número também quem revelasse: “não o suporto mais”; ou ainda, “depois da quarentena, me separo”.
A sexualidade é parte da vida humana e tem permanente ligação com a realidade sociocultural na qual as pessoas estão inseridas. O fato de as mulheres viverem uma atmosfera de medo, de narrativa permanente da morte, do estresse do cuidado da casa, dos filhos, dos pais, do próprio trabalho e de si, dificultam um clima de desejo e relaxamento para algumas delas. Uma mulher manifestou essa tensão assim: “Não aguento mais, tô estressada, exausta e esse homem só pensa em sexo! Não sei mais o que fazer!”. Para o sexo, assim como para a vida, vale a máxima que “só tá bom pra um, quando tá pra todo mundo.”
As mulheres continuariam se sentindo oprimidas nesse lance de vida a dois? Será que ainda acham que estão subordinadas aos seus maridos sexualmente e que faz parte das suas obrigações domésticas estarem disponíveis para eles à noite? Será que têm medo de dizer um franco “não”? Silvia Federici, partindo da análise do feminismo radical, garante que, desde que o trabalho das mulheres passou a ser servir os homens, o sexo virou também um tipo de trabalho. A mulher serve lavando a roupa, fazendo a comida, mas também transando com seus maridos quando eles desejam.
Mas vamos falar de amor! É verdade que o amor é inóspito nesses tempos, mas por outro lado nunca foi tão urgente amar! Parte das entrevistadas revelaram que estão mais dispostas sexualmente, 29,7% disseram que se aproximaram mais dos maridos tanto pelas dificuldades enfrentadas conjuntamente ou pelo revigoramento dos afetos a dois. Talvez tenha relação com tempo de casamento, se têm filhos nessa rotina, dentre outros fatores.
O casal de professores alemães Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim, escreveram a duas mãos O caos totalmente normal do amor e revelaram que a aparência de normalidade no casamento é enganosa. Dos pequenos conflitos sobre quem lava a louça até o erotismo do casal, os contrastes da convivência doméstica transformam tudo em uma questão pessoal e corrosiva. É na esperança por um amor fugaz que as pessoas continuam casadas, descasam e sobrevivem em quaisquer tempos. E dizem:
“O amor é certamente prazer, confiança, ternura, ao menos como promessa; mas também não deixa de ser todo o restante e até o oposto: tédio, raiva, hábito, traição, destruição, solidão, terror, desespero, riso. O amor idolatra o amado, a amada, transforma-os em fontes de possibilidades onde os outros só veem gordura localizada, pelos de barba e (eloquentes) silêncios.”
A vida a dois na pandemia ficou mais complexa e nem sempre é só de amor que se vive, pois precisamos abrir as “câmaras ocultas do desejo na privacidade” e escapar do destino de nossas avós! Onde há vida e sentimentos, acredito muito nesse acerto generoso. Ingênua eu? Talvez! Mas daqui escuto Carmelitta Adiós cantando “Se puede viver sin oro, pero no sin esperanza”.
Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.