Bemdito

Tarde para morrer jovem

Um filme sobre as diferentes gerações que compartilham o mesmo tempo do calendário, enquanto se lançam sobre a vida em direções diferentes
POR Olivia B. de Avelar

Como você se sentiria se, num dia como o de hoje e numa idade como a de agora, você encontrasse – fingindo um acaso mal disfarçado que denuncia uma busca necessária e doída – dobrada dentro de um livro muito amado, de um caderno usado ou caixa de sapatos antiga, uma carta que exibisse, amarela e lisonjeira, sua própria e íntima caligrafia passada.

Imagine que, nessas páginas, você encontrasse suas mais verdadeiras palavras, escritas em um momento rompante, sem medo ou vergonha alguma de parecer ridículo ou descoberto, frágil ou apaixonado, imaturo ou incapaz de manter o que você mesmo assinou. Imagine – e essa é minha última proposta para essa pequena e delicada introdução que se impõe, por ser necessária e bonita – que você se vê ali, segurando a si mesmo, apertando o papel como se tentasse agarrar suas próprias e já outras mãos – mãos que já foram suas -, como se tivesse encontrado as respostas tão simples que você andou procurando por tantos lugares e anos, como se tivesse a capacidade de recolher as areias da uma ampulheta implacável e, assim, evitar que aquela pessoa que você foi perdesse tudo o que de mais terno e mais caro você tinha, podia e era.

Ler-se a si mesmo – sem retoque, sem correções, sem proteção e sem aviso – em uma mensagem encapsulada e conservada pelo tempo, mas que, agora, precisa ser reincorporada e redimida. Será que uma carta que nunca foi remetida pode, tantos anos depois, salvar e fazer livre a pessoa que nos tornarmos, depois de tanto tempo que passamos esquecendo – por autoimposição ou por medo – aquele ou aquela que um dia fomos? 

Nascido de uma imagem em fita cassete – um rolo caseiro que a diretora do filme assistiu, de quando ela tinha cinco anos – que mostrava famílias que se mudaram para uma floresta nos arredores de Santiago, capital do Chile, durante o verão de 1990 – Tarde para morrer jovem é o filme que começou a ser imaginado em VHS para nos contar, digitalmente e hoje, sobre como as diferentes gerações convivem no mesmo espaço e compartilham o mesmo tempo do calendário, enquanto sonham e se lançam sobre a vida em direções tão diferentes, e, sentimentalmente, opostas.

Em dezembro de 1989, o general Augusto Pinochet foi derrubado do poder pelas primeiras eleições democráticas do Chile, desde a instauração da ditadura militar, em 1973. No filme, os adultos que decidem se mudar para a floresta almejam um recomeço em meio à natureza. Uma distância segura dos tormentos e torturas da cidade que se modernizava e impingia, aos seus habitantes, um ritmo rápido e sem alma com o qual eles não se sentiam mais obrigados a compactuar. Eram artistas, artesão e simples trabalhadores – pessoas que tinham, em comum, a sensação de que, finalmente, poderiam respirar livremente. Pessoas que, tendo vivido os piores e mais pesados anos de ditadura, acreditavam que, ao olharem para o horizonte futuro com esperança, conseguiriam retomar e reconstruir, nesse idílio natural, os mesmos horizontes para sempre perdidos do passado. Pessoas que, por um breve instante, acreditaram que receberam a dádiva de reviver os melhores anos de suas vidas. 

Enquanto se esforçavam para manter sua comunidade funcionando, os adultos – como que envoltos em uma ébria nuvem de contentamento frágil e fugaz – pouco percebiam que todos os consertos feitos nas casas e automóveis, toda a sua perícia ao elaborar projetos para canalizar a água dos rios e toda a sua vontade de encantar os jovens filhos com seus sonhos passados eram, tristemente, em vão. Com os olhos fixos em sua própria juventude perdida, os pais pouco, ou quase nada, enxergavam que os filhos sonhavam seus próprios sonhos e que a cidade que os adultos sentiam ameaçadora era, para os mais jovens, um desejo e um chamado constantes.

Os filhos adolescentes, que ainda viviam a realidade imediata da vida e do agora, sem nenhuma lente embaçada pelos anos de violência e pelos caminhos não percorridos, sentiam falta da energia elétrica que os pais não queriam mais usar – simplesmente, porque precisavam ouvir suas músicas preferidas. Indiferentes ao fato de que aquele lugar era, para seus pais, uma redoma de proteção para seus frágeis desejos de juventude, os filhos viviam na pele o verão do primeiro amor e das primeiras perdas, sem saudade, apenas vontade, encontros e pura devoção.

O verão ainda verde de quem sente que a vida é um eterno convite e o verão de quem já enxerga o azul com o outono nos olhos – os primeiros, experimentando o rápido agora, mas ainda sem saber que todo aquele gosto demora tempo para ser completamente sentido e, os segundos, tendo apurado que a vida não espera e que os sonhos se tornam, muitas vezes, bagagem difícil de levar consigo em meio a tantos desastres dentro e fora de nós, ainda se demoram, tentando trazer de volta ao céu da boca um gosto que só vive, agora e para sempre, ao sabor da memória e ao devir do tempo.

Cada geração está condenada a conviver, solitária e silenciosamente, com suas próprias ilusões. Podemos olhar dentro dos olhos dos jovens – podemos olhá-los frente a frente – mas nunca estaremos olhando na mesma direção. A única juventude que reconhecemos, profundamente, é a nossa própria e jamais devemos contar aos jovens de hoje os nossos sonhos passados ou, muito menos, tentarmos convencê-los a viver pelos nossos antigos desejos.

Seguimos vivendo para frente, mas sempre com uma parte do olhar voltada para trás. Nossos horizontes devem juntar – como em uma cena feita de imagens sobrepostas – o futuro e também aquilo que enxergamos pelo retrovisor. Sempre aqui, porém, muitas vezes – tantas quantas forem necessárias – ainda seremos os antigos filmes nas fitas guardadas pela família, as mesmas e velhas cartas nunca entregues e que vão se tornando, ano após ano, mais espessas e mais doloridas, aqueles eus tão intactos que nunca poderíamos ser novamente, mas que nos trouxeram, sobre os ombros e dentro do coração, até os dias de hoje.

E quanto aos jovens, talvez os reencontremos, de relance, quando chegarem até onde estamos, agora. No entanto, também desse agora, nós já teremos partido e, com certeza, já estaremos a uma altura da estrada em que existirão, para nós, muito mais imagens no retrovisor do que propostas ao virarmos a próxima curva. No entanto, é bem possível que, como há mesmo de ser, eles também não nos vejam. Estarão perdidos, também eles, reencantando seus próprios amores inalcançáveis. Reencontrando seus antigos eus, na contramão do tempo, no eterno recordar e, tomados pelo desejo ingênuo de querer retornar e reviver, mesmo assim seguindo em frente. É de seguir em frente sendo arremessados para trás que é feito o empuxo sagrado e constante da nossa, e de todas, as vidas. Seguimos porque já é tarde. Seguimos para tentar encontrar, mais uma vez, tudo o que fomos quando ainda éramos jovens. 

Olivia B. de Avelar

Professora, escritora e apaixonada por cinema, é formada em Letras e pós-graduada em Filosofia.