Um sujinho colorido nos olhos
Como o uso do delineador em uma ida ao mercantil me conecta com as várias alices, outrora esquecidas, que me habitam
Alice Dote
alicedote@gmail.com
“Amei teu delineado”, ela disse. Não mais que um minuto antes, vinha em minha direção empurrando um carrinho de mercantil com três ou quatro unidades do novo pão de coco da rede: artesanal, sem conservantes, com crosta de raspas de coco. Naquela segunda-feira, estava de promoção. Era um pão grande, comprido, bonito. Sua superfície dourada e brilhosa me atiçou os sentidos: o acento doce no gosto salgado, a textura levemente grudenta nos lábios, a crocância dos pedaços ali em relevo a surpreender o mastigar. Enquanto ela apresentava o pão, ele já se imaginava em minha boca. Mas apenas agradeci e disse que hoje não iria levá-lo comigo. Então ela, como que agora já livre do ensaiado roteiro de venda dos pães, mostrou ter reparado o traço vermelho nos cantos dos meus olhos. Estávamos na esquina do corredor dos macarrões, molhos, azeites, conservas e cereais.
A grande e pontuda máscara branca, justíssima nas maçãs do rosto, espreme as bochechas e pressiona os olhos já pequenos e levemente caídos, herdados do rosto do meu pai. Foi nos corredores desse mesmo mercantil, na última sexta-feira de fevereiro, que percebi, com algum embaraço, como havia cumprimentado um vizinho com uma forte piscada, quando poderia simplesmente ter dito “oi” ou acenado. Passei o resto das compras a remoer minha falta de jeito à lida social. No corredor de pães, concentrada na minuciosa procura da data de validade mais distante, só reconheci o casal do térreo nos segundos imediatamente anteriores à sua passagem. Junto a um movimento de cabeça, como um enérgico “sim”, apertei rapidamente os olhos. Neles, uma sombra cremosa azul. Azul-menta.
Comecei timidamente, mas agora já escolho entre uma profusão de cores e de possibilidades de riscos nas pálpebras, na linha d’água, no côncavo. Vermelho, azul claro metalizado, azul royal, azul marinho com glitter, azul menta, rosa seco, rosa chiclete, rosa bebê com glitter, magenta, coral, verde pastel, verde água, roxo, lavanda, berinjela, amarelo, marrom metalizado, marrom kajal. Pinto o que sobra do rosto tomado pela máscara. E, a cada ida ao mercantil ou à farmácia, esse sujinho colorido nos olhos vai aumentando: quanto menos me levo à sério, mais me permito a aparente extravagância. Nada pretende, nada importa: só está ali, existindo, por fome de beleza. Hoje, o grosso delineado dilatou-se, em um opaco azul claro, por toda a pálpebra. Um bloco azul sobre os olhos. Volto para casa e, já só de calcinha e sutiã, passo pelo espelho com o prato do almoço à mão, e me assusto ao notar que meus olhos ainda carregam o azul. Nada sob o céu mudou.
Não sou a única que tem aproveitado cada mínima oportunidade para sentir um pouco mais de mim mesma. Com mais frequência, tenho visto mulheres dizendo da vontade de se maquiar para uma reunião no Zoom, de usar paetês para ir às compras da semana, de calçar sapatos para qualquer coisa. De vestir-se com um tanto mais de carinho para mais um sábado em casa. Foi minha mãe quem me disse que se arrumar para coisas e pessoas que gostamos é uma maneira de mostrar que nos importamos — não só com elas, mas conosco. Que mais especiais ocasiões haveriam para nossas roupas especiais? Eu tinha uns 10 anos de idade. Estávamos no banheiro de sua suíte, no apartamento do Montese, nos preparando para visitar nossos avós paternos e maternos, o que era um programa rotineiro aos finais de semana. Não sei se consigo explicar a ternura de sua observação.
Digo que essa é apenas uma de minhas tantas fases, um de meus tantos trânsitos de exagerados e inadiáveis interesses. Já, já, passa.
A verdade é que não sei bem o que anda acontecendo nas últimas semanas, mas a expressão que repetidamente me surge, como um mantra involuntário, é: “estou fazendo as pazes comigo”. Os conflitos não se ausentam, pelo contrário: se estendem, por dias, num intrincado labirinto de questões. Mas sinto, através deles, uma tentativa de reconciliação entre várias e distintas alices que retornam, repentinas e indômitas, em lampejos de imagens. Tem se tornado quase inconveniente: lavando louça, e uma aparece; virando a página de um livro, e agora outra; ecoando a música no banho, e mais uma. São lembranças adormecidas, fases que decidi sepultadas, imagens de mim que julguei passadas e aquietadas num lugar da memória. Muitas vezes, elas têm voltado através das coisas que redescubro e coloco sobre o corpo: não só aqueles artigos antigos, já tão impregnados do tempo, mas também esses que, por uma certa maneira de uso, conversam com o que desconhecem sobre esse corpo. Uma meia vermelha entre o pé e o sapato preto. Um tom escuro nos olhos. Um batom vermelho de nome rubi. As roupas tocam as primeiras notas de músicas há anos silentes, e os sons que bagunçam o corpo com alguma embaraçosa nostalgia me lembram um corpo vestido.
Tento entender o que sinto. A sensação é a de trilhar um caminho de instável apaziguamento. Essas alices, por que quis esquecê-las? Por que cheguei a desdenhar e mesmo me envergonhar de seus interesses, gostos, práticas e relações? Talvez tenha pensado que precisava enterrar uma fase para fazer surgir outra, enterrar uma alice para fazer surgir a que eu acreditava que gostaria ou deveria ser. Agora, não sei a que toque, elas acordam e parecem inquietas na ânsia de se misturar. Sinto alívio ao notá-las ainda aqui. Sinto alívio ao notar como tenho conseguido acolhê-las. Chamo-as, de mansinho, para conversar. Também com alguma constrangedora comoção, um borrado colorido nos olhos, sinto-as chegando onde já habitam.
Alice Dote é mestre em sociologia e artista visual. Está no Instagram.