Uma carta para minhas filhas
Uma revelação amorosa para as filhas que eu gostaria de ter
Mariana Marques
marianamarquesb@gmail.com
Stella, Catarina, Claire, Luzia, Carmem, Antônia, Sofia,
Todas vocês poderiam ter sido a filha que nunca me nasceu. Pela maioria dos dias, tudo bem. Hoje, especialmente hoje, me bate um arrependimento de não ter ficado, irresponsavelmente ou não, grávida.
Stella poderia ter tido sarampo, Catarina coqueluche, Claire pneumonia, Luzia alergia, Carmem catapora, Antônia anemia e Sofia poderia ter herdado meu nariz. E tudo bem. Eu teria ido ao hospital, segurado a onda, trincado os dentes. Teria chorado com dor nos mamilos, teria tido febre para o leite descer. Teria brigado com quem quer que fosse o pai de vocês por mil motivos reais ou inventados. Os cabelos caindo aos montes no chão do banheiro, e eu pensando, enquanto as lágrimas escorriam junto da água do chuveiro: o que foi que eu fiz? Cadê minha vida de antes?
Hoje, minha filha que não nasceu, me deu vontade de te escrever, como quem escreve pro vento, numa tentativa (não importa se vã) de me comunicar com a possibilidade de ti. Isso me faz, também, uma mulher em movimento. Tive um medo horrível que você nascesse antes do tempo, queria querer, queria estar preparada, queria ter um companheiro disposto e confiante ao meu lado. Esse adiamento todo tomou minha idade reprodutiva de assalto e, olhe só, você nem nasceu.
Dou graças a Deus:
– quando acordo a hora que quero
– quando posso trabalhar até a hora que preciso e tenho vontade
– quando planejo uma viagem em 7 minutos e carrego nada mais que uma mochila
– quando demoro no banho como se houvesse água no planeta para mais 10 anos.
– quando durmo 3h da manhã depois de beber, sozinha, 2 garrafas de vinho.
Nesses momentos, adoro tua ausência, bendigo teu desaparecimento precoce mesmo da fantasia de ti. Vivo nessa gangorra útero cheio / útero vazio, deve ser assim até o fim da vida. E ouso dizer, minha vida: tudo bem que você não exista.
Sinto tua falta quando vejo uma mãe tomando uma menininha pela mão na calçada. A mãe muito preocupada em achar o endereço certo, enquanto a menina olha com atenção as botas verdes do flanelinha que pastora os carros daquele órgão público perto do meu trabalho. Ontem foi assim. Flertei com a menininha como se te olhasse. Depois me dei com o próximo desafio do dia e você desapareceu de novo.
Sinto tua falta, também, quando vou a um velório. Quem chorará na beira do meu caixão se eu tiver direito a um? E quando eu precisar das comprinhas do hortifruti e da farmácia, quem as fará? E se tivesse as tido e Stella fosse embora para o Japão, Catarina fosse independente o suficiente para não lembrar das compras, Carmem fosse egoísta de nascença? Lembro então que não há garantia de nada. Que não adianta parir para povoar o velório. Não adianta sequer pensar no velório. Aí passa.
Mas sinto tua falta na padaria, quando me deparo com a vitrine recheada de friturinhas que, puxando a mim, você gostaria. E eu levaria não dois pães carioca, mas 5. 100g de coxinhas, 1 saco de broa. 30 laranjas, conforme comprava meu pai. Me contento com 4.
Então sinto tua falta na praia, pra que eu pudesse te enterrar até a cintura, esculpir um rabo de sereia como aprendi observando Tonho da Lua, e te ver me chamando: mamãe mamãe mamãe, pedindo para ser resgatada. Porque a areia estava pesada. Porque você, Stella Catarina Carmem Luzia Antônia Sofia, precisaria da minha ajuda.
Lembro, pois, de me ajudar primeiro. Enquanto não dá teu tempo, quem é que sabe se teu tempo existirá, te imagino escapulindo rasgando minhas partes baixas até que eu grite e depois esqueça, no momento em que você toda breada das minhas entranhas repousasse no meu peito para sentir o que pode ser mamar. Me dá também uma certa agonia, mistura de cócega com aflição. Mas deve ser coisa que se supera.
Essas datas mexem com a mãe de vocês. E vocês tomam uma massa amorfa, mas ainda assim um corpo, fios de cabelo vistos de trás, vultos de olhos castanhos, marcha insegura de quem aprendeu a andar, laços vermelhos, chupetas, baba, cocô.
Aproveito pra pedir perdão logo, por ter tirado vocês desse profundo sono, só para ter o direito de tresvariar.
Essas datas mexem comigo como o diabo, e é assim que eu acordo no segundo domingo de maio. Tentando vestir os corpinhos desconhecidos de vocês para almoçarmos na casa da avó.
Comportem-se.
Um beijo da mamãe,
Mariana.
Mariana Marques é publicitária e artista plástica.