Pessoa negra, abrace a sua raiva
“Ser negro e relativamente consciente é estar quase sempre com raiva”
James Baldwin
Às vezes, sinto que nasci com raiva. Desde a infância, havia em mim este sentimento difuso. Era algo que eu não conseguia identificar de onde vinha, tampouco controlar para onde ia. Um descontentamento cuja raiz eu não sabia nomear.
Durante muitos anos me deixei envenenar. Fiquei magoada, ressentida, dava vazão apenas ao que essa raiva me trazia de pior… Custou tempo e esforço, mas aprendi a extrair desse sentimento algo de positivo. Eu ainda não havia lido Os usos da raiva, de Audre Lorde, mas, de algum modo, passei a utilizar aquele sentimento como propulsor.
Foi a força dessa raiva que me fez voltar a estudar aos 26 anos, quando todos em volta julgavam que eu não conseguiria. Quanto mais duvidavam da minha capacidade, mais eu sentia que deveria provar que as pessoas ao meu redor estavam erradas.
A força dessa raiva foi se modificando em mim. O sentimento não deixou de existir, mas passou a funcionar a meu favor e não contra mim. Restava agora conseguir identificar, dar nome a fonte desta raiva. Em Tornar-se negro (1991), a psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza afirma que “saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas”. E complementa: “Mas também, e sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades.”
Ser uma pessoa negra em um país de supremacia branca é avassalador. Somos convencidos, desde o nascimento, que a nossa vida é menos importante, que os trabalhos reservados a nós são os subalternizados, que não somos dignos de amor, que somos inferiores intelectualmente, entre vários preconceitos raciais. Quando nos damos conta dessa mentira que a ideologia racista nos conta, somos acometidos por um mal psíquico. Entramos em afrosurto, como nos ensina Aza Njeri, quando percebemos a estrutura racista à qual somos submetidos.
Infelizmente, não existe experiência negra sem racismo. A raiva não vai passar. A tomada de consciência racial não nos liberta da raiva, pelo contrário, continua perene e ainda mais latente. Porém, quando enfim a lucidez chega, entendemos que não somos nós o problema. Chegar a esta percepção nos ajuda a abandonar o auto-ódio, a rejeitar o discurso racista que nos coisifica e a acolher nossa humanidade. Abrace a sua raiva.