Egotrip do até logo
Nomeio a nova pasta: “Texto 15 – 03/07/21”. Me pergunto por quanto tempo conseguirei escrever — por quanto tempo conseguirei deixar que me leiam — sobre coisas completamente desimportantes, dias meus e coisas minhas, palavras aparentemente des-sabidas do que acontece nas ruas e nos ministérios, nos pratos e nas terras, nas redes e nas contas de luz.
As baratas surgem mortas aos montes. De barriga para cima, se camuflam entre as pedras e a terra do estacionamento, tombam nos degraus das escadas. Começam a reaparecer também por aqui, mas estão mais calmas. Penso que chegam ao terceiro andar já atordoadas da fuga do veneno. Na cozinha, uma jaz emborcada, imóvel às minhas passagens, que a testam. Decidi que ela estava morta e, só por isso, tomei coragem para catá-la para o lixo. Minha mão forrada de papel higiênico aproximou-se, e ela decidiu que estava viva. Correu desnorteada enquanto eu pulava num gritinho que nunca emito.
A balança da cozinha está pesando o ar. Botão ON e ela começa a contar contar contar. Sei de pessoas que, sem hesitar, receberiam a manifestação de vida própria do utensílio doméstico como indiscutível evento sobrenatural. Uma presença invisível, um sinal esperado — mais excêntrico, decerto, que uma queda de energia ou um bater de porta. Acompanho o avançar dos números: tímido no começo, desembesta a partir do quatro, no trinta e seis sei que não vai parar, progressivamente mais lento pelos setenta.
Espero que estabilize num número qualquer, mas a desaceleração é uma ligeira e curta ilusão. Botão TARE e ela relembra o zero momentaneamente para logo desistir de ajustar-se ao que nasceu para fazer. Conta para frente, conta para trás, conta a falta. Para de contar e recomeça. Sozinha, alheia ao meu impaciente olhar. Acompanho os números mais pela expectativa de que cessem seu continuar sem sentido do que pela curiosidade de saber onde eles podem chegar. Não quero saber quanto pesa o ar. Ou o tempo.
Tento ignorar a sujeira da casa. Os cabelos que, em contínuo acúmulo, vencem o esforço do piso acinzentado do chão do banheiro em disfarçá-los A poeira que se destaca, sem qualquer resistência, no piso de madeira. Amontoados de resíduos que vão crescendo em volume e extensão nas passagens entre os cômodos. As coisas que esperam destino. Um esfregão modernoso, presente dos pontos acumulados do cartão de crédito, permanece na caixa, que permanece na sacola plástica, que permanece junto à porta de casa, há exatos três meses. As coisas que esperam decisão.
Vontade de tudo. Vontade nenhuma.
E o gás acabou, a cebola tinha acabado de tocar o azeite. Percebi pelo silêncio do chiado.
Lavo a louça e penso que não consigo pensar sobre o que faço, sobre o que quero fazer, sobre o que não quero fazer. Eu só estou fazendo. Chegou o meio do mês, agora dia trinta assombra, agora faltam só quarenta e oito horas até quarta, agora começa a contagem regressiva ao meio-dia de sexta que essa semana tem texto para entregar e eu não sei o que escrever. Me conforta conferir se a banana, o frango e o alface estão (sempre) perto de acabar.
É bom, né? Não pensar.
Um desenho em nanquim a ser feito. Adiei o reencontro com a tinta, a água e o pincel.
Quero riscar. Riscar rápido, rápido em velocidade e rápido em duração. Riscar forte e fundo.
Não quero deslizar com a aquarela. Quero depositar como quem perfura, escrever como quem inscreve. Afundar o papel com as marcas da força do punho, ouvir o atrito do risco, sujar sujar sujar, quebrar a ponta do lápis.
Restam oito horas para o fim do dia trinta e eu saio de casa para comprar uma nova balança de cozinha. “Manu te amo ♡” na esquina da Visconde de Mauá com República do Líbano, onde iria dobrar à esquerda. Encostei o carro junto à calçada, desci e fotografei a inscrição. Já perdi muitas.
Há quatro dias trabalhando em casa novamente, percebo ir tomando conta de mim aquela rotina em que a linha divisória entre os dias se embota. Apreensiva, sinto-a retornando satisfeita, como uma onda de calor que triunfa, tarde após tarde, sobre os corpos que derruba. Automatiza os movimentos, amolece as vontades, encurta os dias. Não consigo lembrar a roupa que usei segunda-feira. Mas continuo sonhando com paetês.
Me perguntaram se eu achava que me arrumar para trabalhar em casa ajudava na concentração. As roupas, como coisas que existem no mundo para além das humanas intenções, não prometem nada. Por aqui, esperam pacientemente um acordo qualquer entre a praticidade e a fantasia. E, sobretudo — mas não só — quando liberadas dos cabides, pensam. Faz meses já: estendia-as, quando me fugiu da boca a confissão de uma veleidade indefensável. “Nossa, eu amo roupa”.
Escrita, a frase admite e escancara ingênua superficialidade e quase sucumbe à tentação de forjar-se mais profunda com um subterfúgio poético ou filosófico. Estou certa de que conseguiria. Mas talvez tenha sido justo a limpidez do raso enunciado o que carregava alívio. Não recordo qual peça deixava para secar quando esse pensamento iluminou-se. Mas recordo outro momento sob o varal que também diz sobre ele: quando tiro da máquina de lavar um samba-canção de algodão que em trapos meu companheiro desfila pela casa, sorrio por um instante para o que restou da estampa de carrinhos azul antes de estendê-lo.
Faz tempo que não esvazio o cesto de roupas sujas.
Meu ombro dói há quatro semanas. O ombro direito. A dor vai mudando de jeito, e eu vou me acostumando com ela. No começo, ela minava a amplitude dos movimentos. Depois, seguiu a passear por todos os componentes — aqueles que nem sei quais são — do território superior direito do corpo. Eu não sabia que o cotovelo poderia doer. Eu não pensava no meu cotovelo. À vontade, a dor se expande até o polegar. Espaçosa, ela. Agora, pressiona e pesa o sono. Hoje, acordei com as faces das pernas e dos pés doloridas. Piso e a dor caminha. A lombar reclama. Até as nádegas resolveram lembrar-me da sua existência.
De onde vêm essas dores? Minha vida é muito fácil.
Ontem, Nathalia nos desafiou a desenhar um mesmo objeto como quatro pessoas diferentes. A cada três minutos, ou o tempo de uma música, deveríamos esquecer de nós mesmas e convocar uma outra personalidade. Eu não estou conseguindo ser nem uma só pessoa inteira.
Tantos números, a tela pediu os quatro dígitos, e eu só lembro o gesto do polegar.
Enquanto escrevo, onze e vinte e cinco agora, já escuto ruídos vindos da cozinha. Ele deve estar preparando o porco, que descongela desde cedo, enquanto ensaia. “Vodca!” escuto, com cada vez mais frequência, ao longo dos últimos dias: seus ensaios têm se intensificado, ou tenho passado mais tempo em casa? Ele chega à porta e diz que vai fazer a batata inglesa, e não a doce. Isso me lembra de mais uma pendência: lavar a louça. A primeira tarefa do dia foi adiada pois, às seis da manhã, saí para comprar pilhas para a balança. Me tranquiliza o zero fixado no visor. TARE e ele volta, pronto para um recomeço, quantas vezes eu quiser.
Tiro da gaveta uma velha camiseta branca, manchada de nanquim, e a estendo no encosto da cadeira. Me deu uma vontade de bordá-la, ou de bordar qualquer coisa vestível, eu que não sei bordar. Como eu não entendi isso antes? A ficção é que é uma necessidade.
Depois de tantos meses que já nem sei se o ano era esse, sinto o mar. Ele está saindo para nadar, como faz todos os dias, e eu me pergunto o que aconteceria se eu largasse o notebook na cama e o acompanhasse. O que aconteceria com o prazo de amanhã? O que aconteceria se eu não entregasse este texto? Tenho doze minutos para me arrumar. Vinte e oito minutos na areia. Cinco no mar.
Talvez, se eu parasse para pensar, teria o que escrever.