Bemdito

“Sex/Life” e cirurgia de aumento peniano: pênis rei e vagina vassala?

Uma reflexão sobre os desejos sexuais de Billie, mulher e mãe puérpera, e os discursos machistas por trás disso
POR Paula Brandão
Foto: divulgação

A sugestão de algumas amigas foi a de que eu não assistisse à série Sex/Life, pois o Leandro Karnal havia dito que embora o time de roteiristas, a diretora e as protagonistas da série fossem mulheres, não eram tão originais, afinal, os homens assumem a cena e concentram a narrativa em torno do clichê macho alfa e pênis grande. E Karnal finaliza: “haverá uma narrativa de sexo fora do nado sincronizado da testosterona?” Há sim, professor! Embora a série tenha limites óbvios e seja centrada na cisheterosexualidade, vale assistir. E foi exatamente por ser desobediente aos discursos masculinos que descobri.

Nos oito capítulos que constituem a série, eu, como mulher, feminista e mãe, só consegui ter empatia por Billie, uma mulher puérpera, cuidando de uma filha recém-nascida, e outro de 4 anos, vagando pela casa com um camisolão branco até os pés, tipo aqueles antigões da vovó. O marido era quase uma visita, entrando e saindo dos seus dias, elegantíssimo, para pegar o metrô e trabalhar em Nova York, enquanto ela ficava até de noite, com os filhos precisando da sua atenção infinitesimal, e chegava a dormir no chuveiro, naquelas casas enormes do subúrbio americano – francamente, o covil de toda a melancolia e depressão da mulherada de classe média branca de lá.

Só uma visão feminina poderia mostrar o desespero daquela mulher, enquanto as pessoas levavam a vida ignorando a precariedade em que ela estava inserida. Ninguém percebia o que se passava com ela? Sem planos de futuro, com um PhD em Psicologia interrompido para casar e ter filhos, o marido em franca ascensão profissional, o que resta à ela naquele chambre branco? Lembrar-se do sexo quente que tinha com o seu ex! Não só pensou, mas para tornar mais real a coisa toda, resolveu escrever diários narrando os pormenores dessas práticas sexuais.

Resultado: o marido encontra, lê e passa a perseguir o cara para descobrir o que o fazia tão diferente. Num desses dias, ao tomar banho na academia que o outro malha, descobre que o ex tem o pênis enorme. A série já vale por essa cena. Eu devo ter acordado o quarteirão todo com a minha gargalhada. Lascou!

Certamente, para os homens que assistem à série, inseridos numa cultura machista como a nossa, em que desde pequenos comparam os tamanhos de tudo, do brinquedo e do carro ao pênis, a série é sobre isso. Para o marido fraquíssimo e sem tesão algum da trama, evidentemente. Ele, que nunca foi traído, passa a satanizar Billie pelos seus desejos do passado, e tem uma cena em que ele vomita de nojo ao pensar no que ela já fez.

Recentemente, um cantor sertanejo anunciou que iria fazer uma cirurgia de aumento peniano. Fiquei pensando por um bom tempo o que mudou para que alguém assuma, publicamente, que seu pênis não tem um tamanho satisfatório e quer deixá-lo maior. Achava que os homens não falariam disso nem sob tortura. Dias depois, a clínica recebeu uma quantidade enorme de pedidos para a intervenção cirúrgica, e criou-se uma fila de espera.

Sob a égide de uma sociedade falocêntrica, em que se cria a utopia de um homem infalível, imbrochável, homem-potência, macho-viagra, vive-se a premissa de que sexo é gozo e penetração. Recentemente, ouvi de alunas que faziam rodas de conversa com universitárias, em Fortaleza, que elas não sabiam que havia um canal de penetração diferente daquele da urina. Elas desconheciam e tinham vergonha da própria vagina, e sequer sabiam utilizar um preservativo feminino. Como podemos falar de empoderamento feminino, enquanto as meninas continuam no ritmo da musiquinha “cabeça-ombro-joelho-e pé”? E a vagina, tem não?

Os processos defasados, que norteiam a sexualidade feminina, camuflam o conhecimento de si e moldam as noções de que mulher deve cruzar as pernas, cuidar da sua florzinha, e aos homens cabe abrir e coçar as partes. A nossa protagonista passou um perrengue danado porque conhecia muito bem a sua sexualidade. Ela queria ser mãe, sim, e é excelente por sinal, mas ela também queria se sentir desejada e amada. Os caras que conheceu antes de se casar eram uns grandes babacas, e talvez tenham contribuído para que ela almejasse parar a “vida louca” e desejasse calmaria e acolhimento.

Enquanto ela naufragava, se deprimia, todas à sua volta, diziam que ela tinha feito aquela escolha e devia se sentir uma garota de sorte por ter tudo aquilo. Ninguém via o desespero dela? A mulher vivia chorando, com um carro de bebê pra todo lado, e as pessoas não a acolhiam. Se fosse sua amiga, você diria o quê? Ainda bem que não escuto daqui as respostas. Provavelmente, diria que vai passar, elencaria as qualidades do marido, e acrescentaria que não é fácil criar dois filhos sozinha, porque no fundo é isso que acaba acontecendo.

O antigo analista de Billie assevera a questão que parece definir toda a trama: “a pessoa que lhe dá segurança, não pode ser a mesma que lhe dá emoção, risco, empolgação, desejo.” Ou seja, mulher, você não pode ter tudo ao mesmo tempo. Se tem 85% do que sonha para um casamento, não espere que os 15% aconteçam. Se tem bom marido e pai para os seus filhos, deixe de ser louca. Deixe de querer ter sexo ardente às 3 horas da manhã, transar no carro ou nos banheiros públicos. Isso não é coisa que um marido pensa em fazer com a mãe de seus filhos, como diz o trouxa lá. É isso o que vocês acham?

Na pesquisa que fiz em 2020, com 370 mulheres casadas de Fortaleza, 50% disseram que se masturbavam. Podemos pensar que isso significa que a mulherada começa a arregaçar as mangas para ter prazer por conta própria. Isso já considero um avanço. Mas esse papo fica para nossa próxima conversa.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).