Waldy, o saxofonista, entre a leveza e a brutalidade
Tenho convicção de que, sem o risco de insistir em um clichê, é a música a expressão humana que mais nos aproxima da ideia de Deus. Não que ela nos permita apenas contemplar o divino, como um canal místico que desperte as sensações para o além-mundo.
A música nos aproxima de Deus porque é absolutamente maravilhoso que a nossa inteligência possa mobilizar uma técnica de produção de sons para produzir beleza e toda uma infinidade de discursos e emoções, que nos sirva para expressar movimentos muito profundos e complexos sem necessidade da palavra escrita ou falada. O divino, afinal, não é a capacidade de criar a partir do nada, inaugurando o novo?
É por conta dessa certeza arraigada que penso nos instrumentos musicais como objetos sacros – que devem ser respeitados, cuidados e guardados, bens que fazem parte de um patrimônio que não é só de quem é capaz de tocar e manusear o instrumento. É brutal e indigno o gesto de quem, por único de desejo de aniquilar, destrói um instrumento musical, um objeto cuja única aptidão é a possibilidade de exprimir.
E o que dizer dos músicos? Profissionais e artistas que se dedicam a nos mostrar que o divino está em nós? Pense na imagem de um sanfoneiro, uma pianista, um violoncelista, uma violinista ou uma cantora reservando uma parte preciosa da sua vida, do seu tempo e da sua inteligência para aprender a nos comunicar com o som.
Pense na suprema atitude de generosidade de uma orquestra que, no esforço hercúleo da harmonia e da coordenação, conduz nossa sensibilidade por lugares inimagináveis. Como não respeitá-los, profundamente, por sua divina humanidade, e retribuir, agradecidos, pela possibilidade mesma de sua arte?
Eu aplaudi Waldy algumas vezes, sentada na varanda. Não há dia ou hora certos para sua passagem noturna. Ele surpreende o silêncio entrecortado por sirenes com o som metálico de seu saxofone, que reverberava nas paredes recobertas de cerâmica dos arranha-céus de Fortaleza.
Sua rotina errante, de certo modo, também se incorpora à nossa rotina. Waldy passa, para por alguns minutos na rua, exibe as melodias do seu repertório, faz pausas para receber as manifestações dos vizinhos, uma ou outra ajuda, aplausos, gritinhos melancólicos de bravo!. É um músico nômade, sofrido, necessitado de público como de subsistência, exposto ao risco da noite e do desamparo, como tantas almas.
Foi a lembrança da sua música que guardo afetuosamente na memória que me veio quando deparei com as imagens de Waldy sendo espancado na rua por um grupo de homens, imagens que correram as redes e os veículos de comunicação cearenses no dia de ontem. Foi um choque que me revirou o estômago e não posso acreditar que Waldy estivesse sendo maltratado unicamente por estar tocando sua música.
Sabemos muito pouco sobre as motivações da violência. O porquê de aquelas pessoas o baterem tão covardemente, o arrastarem pelos pés, amarrado a uma corda. Sei que senti vergonha, uma profunda vergonha, de fazer parte de um mundo que responde ao seu saxofone generoso com tanta brutalidade, indignidade, dor.
Senti vontade de saber mais sobre Waldy, se está bem e em segurança, o que foi feito do seu instrumento, se suas mãos estão em bom estado (o que pode ser mais devastador para o músico do que ter sua possibilidade de tocar subtraída?).
Na solidão de muitas noites, foi a presença inesperada da música de Waldy que trouxe conforto e um vislumbre de futuro, mostrando que, apesar de todas as penas, as indignidades e desesperanças, somos capazes de música. Que ele possa se recuperar e que possamos retribuir com decência, generosidade e segurança a oferta metálica e emocionada que ele, sem aviso, nos traz.