Bemdito

O purgatório do “depois preciso falar com você”

Uma queixa à artimanha mais sacana de Deus
POR Felipe Pinheiro

Tá você querendo paz, tentando cumprir a rotina na bonacha, passar despercebido no aperreio das multidões, quando surge um rosto familiar, com semblante firme, e te fulmina: “Depois eu preciso falar com você, viu?”. Sentiu a pressão só de ler? Tô contigo.

Por toda a internet, mais frequente no distrito dos memes, abundam testemunhos de pobres coitados, ansiosos crônicos, que tiveram dias arruinados por um sentencioso: “Depois preciso falar com você”.

Venha do chefe, dos pais, do conjugue, do líder eclesiástico ou de uma amizade valorosa, essa intimação abre porteira para as mais criativas e aterrorizantes paranoias. Uma única isca psicológica capaz de fisgar cardumes inteiros de neuroses.

Não adianta que se peça, se rogue, se suplique o motivo ou teor do assunto, o “Depois preciso falar com você” está inapelavelmente condicionado a frustrantes conseguintes: “Agora não”; “Depois te digo”; “Só em particular”. Assim se inicia a desgraça.

No penoso arrastar do tempo que antecede a conversa, você vai envelhecendo encarnações, se canibalizando pelas unhas, roídas até os cotocos. O rosto descora de sangue, os cabelos desabam do escalpo, o estômago despela em ondas frientas, subindo e descendo pelo bucho a cada lembrete da fatídica acareação por vir. 

Se o diálogo validará ou desmentirá a aflição é insignificante. Até lá o estrago já estará feito. Por mais que não pese na consciência qualquer motivo para martírio, o cérebro já entrou em rebelião e violentou neurônios com loucas especulações: Que relações eu estraguei? A vida de quem eu destruí? Quem tá me jurando de morte?? Foi naquele dia que bebi?? Nunca mais eu bebo! Jamais serei perdoado! Eu vou é embora dessa cidade!! É o fim da linha pra mim, está claro! Salve rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa salve…

Compreender o método de quem anuncia a urgência de uma conversa que será deixada pra depois está além de mim. Está além de mim deduzir o que se ganha com isso. O que o intimado perde já se sabe: cabelo da cabeça, unha dos dedos, mucosas gástricas e neurônios valiosos. 

Tendo pelejado muito para entender e não conseguindo, desisti e entreguei a Deus. Ao pé da letra mesmo. Decidi que “Depois preciso falar com você” não é mau hábito social, mas um artifício do todo poderoso, legado aos homens como amostra grátis do que aguarda as almas malcriadas nos aléns do plano físico. Uma aula prática na matéria Purgatório.

Hoje creio piamente que a alma, ao chegar no motel desativado onde funciona o purgatório, é encaminhada até uma saleta com porta sanfonada e largura de corredor. Lá encontra Deus. 

Vendo a rochosa expressão de gravidade do altíssimo, a miserável da alma já treme na base pressentindo uma rajada de esculhambações. Mas não. Papai do céu simplesmente a encara na furna dos olhos e, com entonação insondável, diz: “Depois preciso falar com você”. Sem mais, retira-se da saleta, calculadamente deixando a porta aberta.Tá decretada a penitência: vigiar aquela porta enquanto o vazio da espera, o suspense do reencontro e as feras da consciência caçam e executam nossos pecados.