Homicidas também vestem farda
Barbárie da operação policial na comunidade de Jacarezinho, no Rio, revela que homicidas podem estar do lado de quem porta o distintivo
Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com
A Polícia Civil do Rio de Janeiro foi responsável pela morte de 25 pessoas na Comunidade do Jacarezinho na última quinta-feira, 6. Vinte e quatro moradores e um agente perderam a vida após uma manhã de terror, em circunstâncias de abuso de autoridade que possivelmente jamais serão explicadas. A operação policial viola o que foi determinado pelo Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, que proíbe operações de enfrentamento ao crime nas comunidades cariocas durante a pandemia. [Sobre a ADPF 635, leia este texto de Rodrigo Iacovini, publicado no Bemdito]
Na entrevista coletiva organizada após a chacina, o delegado Felipe Curi, do Departamento Geral de Polícia Especializada, afirmou: “não tem nenhum suspeito aqui. A gente tem criminoso, homicida e traficante. O que causa muita dor na gente é a morte do nosso colega”. Essa declaração já seria suficiente para que a Corte Constitucional do país reconhecesse o estado de total insubordinação que caracteriza a postura de Curi e determinasse a apuração do descumprimento da decisão judicial proferida na ADPF.
Mais grave do que a insubordinação, é a ideologia exposta na visão de mundo do delegado. Ao confessar que não há suspeito, o agente e sua corporação se colocam em uma posição de poder à parte das instituições. Cabe a ele (e não ao Judiciário, a quem acusou de ativismo irresponsável) definir culpa e atribuir pena capital a quem considera criminoso, homicida e traficante. A vida do seu colega tem, segundo a hierarquia que ele defende, mais valor que a vida de quem foi morto – independentemente de quem seja, porque até o momento não sabemos os nomes dos assassinados ou os registros de seus antecedentes. Coube à comunidade lavar poças e rios de sangue deixados pelos corpos mutilados.
Para essas pessoas mortas por um Estado descontrolado e disfuncional, não houve direito ao processo, à ampla defesa ou à proporcionalidade da pena. A apuração da responsabilidade dos policiais envolvidos é quase impossível, não só porque as cenas dos crimes foram desfeitas como porque cabe à própria instituição avaliar os seus erros. Inúmeros relatos de execução de pessoas já rendidas foram feitos por moradores da comunidade. Em vídeos desesperados, mulheres compartilham a barbárie que chega às suas portas com a farda paga pelo Estado.
É difícil imaginar quem possa colocar ordem no Rio de Janeiro. A omissão das instituições é generalizada, com honrosas exceções, como é o caso da brava Defensoria Pública. Como o problema de captura do poder público é estrutural, pouco contribuiu o impeachment do governador Wilson Witzel: os policiais continuam “mirando na cabecinha” para matar.
Em nenhuma circunstância, um agente de segurança pode se valer da violência como forma de responder a agressões. A ação do bandido e do policial não são equiparáveis, porque o agente tem o dever legal de agir para salvaguardar a vida. Se ele executa deliberadamente um suspeito, já não é mais um braço da lei, é um homicida. Muitos deles vestem farda. Como afirma meu colega professor Nestor Santiago, advogado criminalista, “se você pensa que bandido bom é bandido morto, atenção: um dia você pode ser o bandido, mesmo sem querer”.
Juliana Diniz é editora executiva do Bemdito, professora da UFC e doutora em Direito pela USP. Está no Instagram e Twitter.