Bemdito

Muito bem vestido para o combate

O visual dos "sapeurs" é pensado para não passar batido, e sim, passar batendo, fazendo rei e fazendo raiva
POR Cláudio Sena

O visual dos sapeurs é pensado para não passar batido, e sim, passar batendo, fazendo rei e fazendo raiva

Cláudio Sena
claudiohns@gmail.com

Nunca fui muito dedicado ao vestuário. Mesmo tendo o corpo como objeto de pesquisa ao longo de 4 anos de doutorado, confesso que não me apetecia investir tanto esforço na compreensão da cobertura deste. Acontece que me arrisquei na leitura do livro de um franco-congolês, hoje professor da Universidade de Califórnia – UCLA, Alain Mabanckou. Em Black Bazar, fui apresentado a uma escrita de ritmo intenso atravessada por questões raciais, imigração, colonização e conflitos identitários, além de uma espécie de episteme das ruas de Paris e de Brazzaville.

Mas não foi apenas isso que me fez grudar os olhos e finalizar a publicação em dois dias. Interessei-me pelas imagens que não estão no livro (com exceção da bela ilustração da capa) dos sapeurs, seguidores da Sociedade de Ambientadores e Pessoas Elegantes (SAPE) ou, em francês, Société des Ambianceurs et des Personnes Élégantes. Vale a pesquisa, no Google Imagens mesmo.

Já havia visto Mabanckou em programas de televisão e na célebre Leçon Inaugurale du Collège de France, disponível no YouTube. Além da oratória primorosa, o professor mantém estilo impecável e recorrente, expresso em ternos, camisetas, cachecóis, chapéus, óculos, gravatas e sapatos, como um bom representante do movimento nascido, criado e vestido pelas cidades de Kinshasa e Brazzaville, na República Democrática do Congo e na República do Congo.

Pelo que percebi, depois da leitura do livro e de pesquisas entusiasmadas, o SAPE tem representantes e influenciados desfilando nas ruas de diversas cidades do mundo. Falo de cores e combinações variadas, de ousadia nos tecidos e nos cortes, da preferência por marcas de altíssimo luxo, independente do cenário, às vezes sem tanta suntuosidade. Trata-se de uma afronta, ao meu ver, positiva, aos olhos dos caretas e dos poderosos pobres de alma, invejosos pela ascensão do outro. Fazem sentido tais vestes, caso se recorra à origem do termo, pela definição do escritor congolês:

“A SAPE foi fundada na favela de Bacongo, na República Democrática do Congo, nos anos 1960, quando o país estava sob o comando do ditador Mobutu Sese Seko e era ainda conhecido como Zaire. Os sapeurs defendiam o cavalheirismo ocidental, porém à sua maneira: usavam ternos de cores fortes e de corte meticuloso, destoando do cenário de pobreza e representando uma ofensa ao governo da época. Podem ser considerados dândis africanos, mas têm uma identidade cultural muito ligada à história do Congo e do seu passado colonial. Normalmente, os sapeurs vêm de uma classe social baixa, mas são ambiciosos.”

Ofender, chocar, confrontar, resistir pela roupa e calçados. Tudo orquestrado, tudo proposital. Não é só vaidade. Quem quiser olhar, criticar, que os faça, principalmente o governo, neste caso da SAPE.

No livro, o autor narra a sua dedicação, sem sobra para exceções, à escolha de terno, camisas, gravatas e seus nós, e de preciosos sapatos, além dos julgamentos de todos os lados, inclusive dos sapeurs em relação aos mal vestidos e despreocupados com a elegância combativa.

Lembrei-me inevitavelmente das indumentárias afro-ciberdélicas de Chico Science com seu chapéu de palha, óculos escuros e tênis Adidas, colapsando as interpretações das mais simplistas às análises semióticas. Ora, esperava-se o quê? Era o Movimento Manguebeat, da antena fincada no mangue, um pé no centro e outro na periferia, manta de caboclo de lança do maracatu e camisa estampando um arroba, tudo convivendo em harmonia. Uma espécie de Björk renascida, já vestida no nordeste brasileiro. Roupa para estranhar. Visual para não passar batido, e sim passar batendo.

Já que trouxemos para o Brasil, rememoremos Secos e Molhados e ousados, suas poucas e brilhantes tiras de tecidos sob a pele, afrontando os anos 70. Não posso esquecer do parangolé de Hélio Oiticica, que ninguém sabe se bota dentro ou fora do museu. Deixe-me ampliar o zoom em Fortaleza e lembrar-me das camisetas ao estilo goiabeira de DJ Guga de Castro, do colorido e estampado ultimamente usado pelo Preto Zezé. São eles um pouco sapeurs inspiradores e talvez nem saibam disso.

Neste momento do texto, você já deve ter se lembrado de outros e outras corajosos e corajosas nas vestes e na vida. São tantos os que tomaram o caminho contrário do empastelamento dos guarda-roupas. Neste propósito, aguardam combativos ou despreocupados os julgamentos, porque este quase sempre vem, seja pela cara fechada, pelo pensamento invejoso, pelo silêncio constrangedor diante da diferença, pelas palavras escrotas que invadem espaços sociais e individualidades. É interessante como roupa faz rei e faz raiva.

Cláudio Sena é professor e publicitário.

Cláudio Sena

Doutor em sociologia, professor, pesquisador e publicitário, é mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto.