Ponte de uma margem só
O que um marco urbanístico como uma ponte que não leva a lugar nenhum diz sobre o passado e os desejos de uma cidade
Raisa Christina
raisa.christina@gmail.com
Vem
escuta
no meu peito
o silêncio
elementar
dos metais
Ana Martins Marques
Quando vim morar em Fortaleza há quase vinte anos, apertei as pálpebras para aguçar a vista e observar a construção que ao longe se adiantava tímida sobre o mar, na Praia de Iracema. Não compreendi porque davam o nome de “ponte” àquela estrutura. Alguns a chamavam de Ponte dos Ingleses, mas eu preferia dizer, como meus amigos, “Ponte Metálica”, apesar de pisar sobre grossas vigas de madeira que deixavam brechas por onde se presenciava o alvoroço do mar verde a investir em sucessivas pancadas contra os pilares de concreto.
O adjetivo “metálica” fazia referência à construção vizinha, que antigamente havia servido de porto para a cidade. Metálica também podia soar a voz do Atlântico em raras tempestades ritmadas por trovões. Turistas circulavam pelo local, famílias do interior, casais de mãos dadas e grupos de jovens dispostos ao redor de um violão e garrafas de vinho barato. Sobre a Ponte, beijei pela primeira vez alguém nos lábios, conduzi namorados que quis ouvir junto ao vento e às ondas e também foi lá onde, anos mais tarde, encontrei furtivamente ao pôr-do-sol certos paqueras que fizeram reviver em mim o apetite quase adolescente do corpo.
Um professor certa vez explicou que o projeto inicial do equipamento, erguido no começo do século passado e reconstruído em 1921, previa um porto na região, mas a obra não chegou a ser concluída. Nos anos noventa, os arquitetos Fausto Nilo e Delberg Ponce de Leon estiveram à frente do projeto de urbanização da Ponte, desta vez com apelo turístico, e deram-lhe o charmoso revestimento de madeira que vinha resistindo – essas mesmas longarinas que até pouco tempo atrás faziam vibrar as pernas dos passantes ao sabor da força dos amores e das marés.
É no mínimo insólito o fato de a cidade apresentar em seu cartão-postal um símbolo conhecido como Ponte, que na verdade não cumpre a função esperada de uma construção a unir dois pontos, normalmente em margens opostas. A estrutura parte da terra, agarra-se à orla, que veio se estreitando cada vez mais com o avanço das águas, para se lançar ao longo de 130 metros sobre o mar, como o caminho indicado pelo dedo do marinheiro que dá uma única remada e depois desiste da viagem.
Talvez porque não quis desvencilhar-se de sua terra, sabe-se lá os motivos mais ocultos, faltou-lhe forças ou quem sabe esqueceu-se de seguir caminho ao olhar o sol descendo em tons de fúcsia no litoral oeste. Sabe-se que, desde 2018, a Ponte foi interditada. Em janeiro deste ano, teve início o processo de reparação que tem como referência o projeto assinado pelos mesmos arquitetos da reforma anterior.
Nas últimas vezes que caminhei em direção à praia do Poço da Draga, passei pelos arredores da Ponte e não pude contemplá-la por causa dos tapumes. Senti que o horizonte se desenhava sem equilíbrio, que ali faltava um velho traço de pouso para os olhos. Num artigo intitulado “Ponte e porta”, publicado em 1909, o antropólogo Georg Simmel atenta para o desejo muito humano de unir elementos, abrir passagens, vincular pontos distantes. Para unir coisas, precisamos antes tê-las percebido como separadas:
“Assim, a ponte ganha valor estético não apenas por estabelecer o vínculo real e prático entre o que está separado, mas também por fazer desse vínculo algo imediatamente visível. A ponte serve de apoio ao olho para vincular os aspectos da paisagem, e serve também de apoio aos corpos na realidade prática.”
Do que Fortaleza se separou tempos atrás? Que desejo de vincular-se foi esse que teve apenas começo e não buscou assentar-se em outra margem? Talvez o laço que tantas vezes se buscou reatar seja mesmo um vínculo imemorial, com o mar, a perdição do oceano, a devoção à saudade? A Ponte, quase partida, apontaria incessantemente ao passado colonial, de navios negreiros, de gente e terra saqueada, sentimento que ainda assombra. Apontaria também para o lado de fora, para aquilo que se revolta e não cabe mais dentro de si, para a consciência de que somos nós os responsáveis pela realização do trajeto por vir.