A cidade e o fantasma
Começo a trabalhar num livro novo. É sobre Shakespeare e será publicado em 2022. Um trabalho dedicado ao leitor comum, o que é curioso e que quer saber. Para escrever bem, preciso trabalhar muito, e grande parte desse empenho é andar por Londres, entrevistar atores, conversar e ouvir pesquisadores, buscar histórias e estar atenta a nuances. O meu problema é chamar essa ocupação de trabalho, já que Shakespeare é, sem exagero e sem segredos, o grande amor da minha vida e andar por Londres não é, pra mim, sacrifício algum.
Virginia Woolf só saiu definitivamente de Londres em 1940, um ano antes do seu suicídio. Apesar de já ter morado em Monks House, no interior, e frequentar o local por tempo demais para ser classificado como pequena estadia, foi no ano anterior ao da sua morte que ela rompeu laços com Londres. Sei que isso foi um erro porque eu ainda pairo no apartamento que vendi na capital para poder estar aqui, que ironia, a meia hora da casa de campo de Virginia.
Numa carta de janeiro de 1941, à amiga Ethel Smyth ela escreveu:
Que estranho ser uma mulher do campo depois de tantos anos sendo cockney*
Quase que pela primeira vez na minha vida, eu não tenho uma cama em Londres. Sabe o que eu vou fazer amanhã? Vou a London Bridge. Vou caminhar ao longo do rio Tâmisa, explorar os lugares onde eu costumava pairar. Aí, passo por Temple, o Strand, e saio em Oxford Street, onde eu vou comprar macarroni e almoçar. Não. Você nunca compartilhou dessa minha paixão pela grande cidade. Ainda assim, aqui é, em algum canto da minha mente em devaneios, o lugar que representa Chaucer, Shakespeare e Dickens. Londres é meu único patriotismo.
A carta é um pouco mais longa, mas eu sou, invariavelmente, arrebatada pela frase e o pensamento de que Londres é seu único patriotismo. Isso porque eu sei, na minha essência, do que fala Virginia. Sei também de amigos e amigas que concordariam com Ethel e pagariam um bom dinheiro para ter a oportunidade de deixar Londres para trás, como um lugar que lhes serviu para a juventude, como uma velha senhora que foi usada e útil durante determinado tempo.
Quando eu tinha seis anos, ouvi uma história que me assombra até hoje: uma mulher de cabelos longos e camisola branca, a feição como que líquida e coberta por um véu branco até os pés, está a poucos metros de mim e me chama com um único dedo. Ela não diz a razão de me chamar, mas insiste até que eu fecho os olhos e ela vai embora.
Quando eu vendi meu apartamento em Londres para comprar a minha casa, senti muito quando entreguei as chaves para o novo morador. As palmas das mãos pinicavam e os dedos queimavam. Parecia uma reação alérgica. Quando saí pela porta principal, ainda vi, com o canto do olho, a arbusto de hortênsias do meu casamento que meu pai plantou.
Segui para o carro com um caroço entalado na garganta e que, à altura que chegamos na estrada, transformou-se num choro longo e uivado. Como Virginia, eu não tinha mais uma cama em Londres. Passei a sufocar com as mãos todo o ar que a cidade me trazia de volta. Fazia exercícios diários para esmagar o meu amor pela cidade como quem esfacela e amassa o amor teimoso por um homem lixo que não escuta o que você está dizendo. A diferença é que o amor pelo homem insuficiente cansa e realmente acaba.
A mulher de véu branco continua aparecendo para mim. Geralmente quando perco o sono ela me encontra e eu tento ouvir para onde ela me chama. Eu sei muito bem como me livrar desse fantasma. A única maneira é obedecê-la. Tenho certeza que ela sussurra a palavra “Londres”.
*cockney: londrino do extremo leste da capital. Geralmente associado a pessoas da classe trabalhadora e com um dialeto próprio. Virginia ironiza na carta, já que ela vem de uma família de classe afluente do oeste da capital.