Bemdito

A graça da coisa pouca

O estado da graça talvez seja como o próprio vento
POR Ana Eduarda Diehl
Foto: Karina Tes

Joana, a Sara me disse que ando tonta das ideias. Vou te contar, mas preciso de escuta. Por favor, me escuta.

Semana passada, me ligou um amigo que agora está morando em Tulum, um paraíso mexicano à beira-mar, tão diferente das imagens do deserto. Ele habita as águas quentes que desaguam no Golfo, trabalha com arquitetura orgânica, investiga os traços dos maias sendo ele um brasileiro fruto da imigração espanhola.

Ele me conta da não dualidade, da consciência de tudo que existe. Tudo nele respira, pois anda apaixonado pelo mundo. Desse estado de encontro, meu amigo pensa e as coisas lhe ocorrem como que por mágica taoísta: sem esforço.

É que ele recebeu uma lufada de vento das águas quentes do México, uma espécie de sopro de vida.

Fiquei contente e contei à Sara sobre o ocorrido, disse a ela que também precisava do meu quinhão nesse mundo, da minha lufada por direito a uma vida mais inspiradora. Uma cidade pela qual eu me apaixonasse, um filho, uma bomba de ocitocina, eu não sei o quê. Uma lufada que me virasse do avesso só pra ver as coisas ao contrário.

Fiquei com três homens em seis meses, Joana. Todos eles moravam no Brás e uma hora cansei de inventar ficções, que era tudo pobre demais para ser literário. Não chegamos a partilhar da graça da coisa pouca e sequer fomos ao mercado, embora sempre levasse uma garrafa de vinho para o caso das nossas banalidades. Você sabe que tenho problema de fazer das coisas mais do que as coisas são.  

É que às vezes é preciso dar vinho ao corpo e alguma cor às histórias.

Joana, me ressinto que este não seja o tempo das cartas. Terminar esses encontros por rede social me faz pobre de espírito. Acho que o sofrimento é o mesmo, com a diferença de que não vale a banalidade. As coisas passam assim como se nunca e além de tudo esse bairro já não me distrai os olhos. Sinto que lhe decifrei a noite, que nada mais nasce ou morre no interstício entre os dias.

Receio cultivar em segredo uma espécie de fungo, um limo na pele, como se eu também fosse pedra.

Joana, te lembra quando nos tempos da catequese o frei nos contou sobre o estado da graça? Acho a coisa mais linda do misticismo cristão. Eu não sei explicar o estado da graça, mas sei o que é porque já o tive em mim, acho que você também sabe.

O estado da graça nos pega desprevenidas e faz balançar a viscose das saias. É como andar num dia fértil e ser tomado de um susto, como se Deus sussurrasse em segredo aquilo que só cabe à você e ao vento.

Mulheres possuídas pelo vento são um perigo, deixam rastro pela cidade, contaminam a pureza das lojas às seis horas da tarde.

Não é lascívia, senão questão de força silenciosa maior. A quem detém o segredo do vento, as ruas do mundo são todas passagem.

Ninguém mais sabe, mas você o anuncia no sorriso aos estranhos, feios ou bonitos, distribui gentileza às senhoras, seleciona tomates como se fossem parte de um ritual. Será que existe, Joana, coisa mais graciosa que a feira do nosso largo?

Acho que o estado da graça talvez seja como o próprio vento: permear-se nas coisas sem se deter a nada.

O ar está por tudo, embora às vezes o peito comprima a passagem estreita. É como se afogar não pelo excesso, senão pela falta.

Joana, às vezes me falta o ar, embora eu nunca tenha secado por completo.

Talvez eu tenha chorado uma lágrima e a umidade impregnou em meus ossos uma sensibilidade muito profunda,

onde o que é pouco é sempre um pouco demais.

Perdão por ser tão lamuriosa, minha amiga. Não sei bem o que fazer de mim.

Quem sabe o avesso da graça não seja engraçado? Tenho assistido à Comissão Parlamentar de Inquérito, como se acompanhasse o Grammy. Semana passada, foram os irmãos Miranda. Pelo nome dos personagens, parecia uma novela latina: irmãos Miranda, dois tipos tão diferentes entre si.

O caçula Miranda, o mirandinha não era bem um homem altivo, pois só falava o necessário. Deve ter passado a vida à sombra do mais velho, que tinha gosto por encenar a si mesmo e, como não podia ser ator, calhou de ser deputado. Uma pena.

A graça, Joana, a graça. Às vezes nossa vida se reduz a tão pouco que o que nos resta é torcer para que caiam estes putos. Estou à espera da vacina, como toda gente. Tudo parece suspenso, mas quando vejo os outros reunidos na praça, todos tão possíveis em busca de sol, acabo que me emociono demais.

Eu contei isso a Sara e ela me disse que seria de bom grado passar da transcendência aos guichês. No dia em que lhe confessei meus devaneios, ela esperava na fila do banco. Primeiro ela bocejou, depois acho que se pudesse, teria me dado um tapa.

– A vida também é feita de guichês e coisas sem graça alguma. Larga dessa tonteria.

Sara sempre teve um senso mais prático da vida do que eu, embora também fosse bastante sensível. Uma vez ela trabalhou numa repartição pública do interior e fazia distribuição de balinhas aos velhos, para adoçar o amargo da burocracia. Havia uma senhora que gostava tanto da minha amiga, que às vezes aumentava os problemas para se ter com ela.  Se somavam as dúvidas, e assim as coisas pareciam mais difíceis do que eram, garantindo o retorno breve. Não há bem que não possa surgir de uma balinha, Joana.

Achei tão bonita essa história de dar cor à repartição dos problemas. Mas te liguei mesmo era pra saber se você concorda com a Sara. Joana, me diz, você também me acha tonta?

Ana Eduarda Diehl

Ana Eduarda Diehl é uma espécie de antropoeta. Curitibana, é mestranda e desenvolve projetos culturais na intersecção entre memória, escuta e escrita.