Bemdito

A guerra que ninguém vê

Svetlana Aleksiévitch e a pulsão feminina de vida que desafia a ideologia da guerra
POR Camille C. Branco

A história é um campo de poder e disputas por legitimidade. Historiadores clássicos, como Le Goff e Ginzburg nos disseram isso. Sociólogos como Bourdieu, idem. Contemporaneamente, intelectuais do pensamento decolonial, como Quijano e Lugones, ressaltam essa lição a partir de uma epistemologia centrada nos saberes da América do Sul. Discursivamente, creio que já aprendemos.

A questão em jogo parece ser: Onde estão as memórias silenciadas pelo que se convencionou chamar de história oficial? Como fazer emergir, na prática, a voz de quem foi posto à margem de supostos grandes atos de bravura, quase sempre protagonizados por homens brancos? Me parece ser essa a preocupação da jornalista Svetlana Aleksiévitch e, identificando essas lacunas, a autora parece procurar preenchê-las com o seu A guerra não tem rosto de mulher, publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

A Segunda Guerra Mundial produz, até hoje, um fascínio que beira o fetichismo. Originou filmes, séries, inspirou livros de ficção. Embora se saiba que genocídios em muito maior escala ocorreram no continente africano e na América Latina – sem que recebam a mesma atenção – parece gerar um assombro especial o fato de uma matança tão encarniçada ter ocorrido na Europa, o suposto berço da civilização.

A comoção se torna ainda maior pelo fato de que, entre os mortos em campos de concentração, estavam pessoas de pele branca, nascidas e socializadas no continente europeu. A história oficial transformou Hitler em um maníaco e os Estados Unidos em vencedores e promotores da paz. É uma cantinela que ouvimos desde o Ensino Fundamental. Aleksiévitch desconstrói essa versão.

 Ao longo de vários anos a jornalista entrevistou mulheres que serviram ao exército russo durante a Segunda Guerra. Mulheres que atiravam com metralhadoras, dirigiam tanques, desarmavam bombas, pilotavam aviões, que amputavam membros, literalmente, com os dentes. Mas a jornalista também ouviu protagonistas que, durante a guerra, foram carteiras, cozinheiras, lavadeiras. Tudo compõe um vasto panorama de como o sofrimento da guerra é narrado a partir de uma perspectiva insuspeita: a das mulheres, cuja narrativa ressignifica o cânone historiográfico, notadamente masculino.

Aleksiévitch assevera: “A guerra ‘feminina’ tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali não sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra.”.

Quando Aleksiévitch foi laureada com o Nobel de Literatura, parte do público esperneou. Um trabalho que era pautado na reprodução de histórias de vida reais não poderia se enquadrar nos pré-requisitos do prêmio e Aleksiévitch nem poderia ser considerada autora, pois quem contava eram outros e não ela – a autora fez algo semelhante em Vozes de TchernóbilMeninos de Zinco e As últimas testemunhas  também publicados no Brasil pela Companhia.

Considero tais críticas em tudo injustas. Primeiro porque conseguir que as mulheres falassem sobre lembranças tão dolorosas, tão reprimidas, exige uma sensibilidade que não brota em cada esquina. Segundo porque a seleção e análise – pois há análise – dos depoimentos exige um trabalho artesanal que, se não é literatura, não sei o que é. Em terceiro lugar, se tomamos como verdadeiras as palavras do crítico James Wood, que diz que “a literatura é a coisa mais próxima da vida”, Aleksiévitch parece, isso sim, ter elevado essa proximidade a outro patamar, por meio da polifonia de vozes que evocam vidas esfaceladas.

O livro é um soco, depois mais um, depois mais um. A primeira coisa que me chamou atenção foi o rigor metodológico e a honestidade intelectual com que a autora tratou as histórias. Ela fala abertamente do quanto foi repreendida por tratar da história das mulheres evitando o tom maniqueísta fácil da epopeia heroica. O livro fala dos piolhos, da menstruação, da fome. Ela também fala da reação das mulheres, as que falaram ou não: algumas recusaram o diálogo, não queriam lembrar; outras choram, gritam, passam mal, precisam tomar remédios. Por fim ela também fala sobre a vergonha que modulou os relatos, a censura dos maridos, quando estavam presentes, os pedidos para que a autora ocultasse nomes.

Embora as entrevistadas tenham se tornado atiradoras de alta performance, tenham arrastado corpos feridos com o dobro do seu peso, tenham ido para a guerra voluntariamente, pela crença em um ideal, os relatos delas não são sobre heroísmo. As narrativas, marcadas pelas lágrimas, são centradas no sofrimento humano vivido no front, no cotidiano que se despedaçou durante e depois da guerra.

É uma versão que não serve tanto a ideais patrióticos, a produção de filmes. Mas que foi e é sentida no corpo das mulheres: as entrevistadas ficaram com os cabelos inteiramente brancos aos 17 anos, idade em que serviram; pararam de menstruar durante os quatro anos da guerra; sofreram mutilações; desenvolveram intolerância à cor vermelha, que remetia ao sangue dos campos de batalha; passaram a ter distúrbios de sono e acordar gritando no meio da noite.

E não só as que foram soldados importam a Aleksiévitch: as carteiras, que enviavam cartas anônimas de apoio aos soldados que não tinham família, estão na obra; as lavadeiras, cujas unhas caíam e que desenvolviam hérnias de tanto lavar uniformes duros e inteiramente manchados de sangue; as cozinheiras, que mal dormiam pois precisavam alimentar um batalhão inteiro. Mas acredito que uma das maiores provas de que os relatos das mulheres são regidos por outras sensibilidades foi o fato de que há um tópico inteiro no livro dedicado ao relato sobre os animais na guerra: cães, cavalos, pássaros e até ratos integram a narrativa das interlocutoras. Que homem, em guerra, se preocuparia com os animais mortos durante os conflitos?

E, conforme a autora demonstra, depois da vitória, as mulheres saíram da guerra, mas a guerra não as deixou. Enquanto soldados homens passaram a exibir como heróis suas medalhas e condecorações, as mulheres esconderam que estiveram no front, pois isso as prejudicaria em empregos e relações amorosas – uma mulher que foi à guerra é estranha, é o oposto do ideal de delicadeza feminina.

As ex-combatentes eram acusadas de terem ido para a guerra somente para seduzir os soldados do front: eram enxergadas como promíscuas, prostitutas, mulheres fáceis. Precisaram resgatar a relação com filhos que, deixados muito pequenos sob o cuidado de avós e tias, não se lembravam mais de suas mães. O país não as recebeu como heroínas, mas como problema. Como disse uma interlocutora: “Vou lhe dizer, tomaram a vitória de nós…”.

No entanto, um tipo estranho e aterrador de beleza parece brotar desses espaços marcados pela violência e pelo desespero. Relatos envolvendo partos feitos sob bombardeios estão presentes. Metralhadoras enfeitadas com flores, uma mostra de que havia vida em meio a tanta morte. Amores que nasciam em meio ao front.

Se, por um lado, o livro de Svetlana carrega um traço que eu prezo bastante – certa raiva de fundo pelo patriarcado, que jamais reconheceu os sacrifícios das mulheres na guerra – ele também é um retrato da capacidade de suportar das mulheres, da permanência de suas vozes mesmo depois de tanto apagamento. Em determinado ponto, a autora afirma que o ser humano é maior que a guerra. Em um momento histórico como esse, em que a guerra mostra novamente sua face mais horrível no conflito armado entre Rússia e Ucrânia, Svetlana existe para demonstrar que, pelo menos, as mulheres são. 

Camille C. Branco

Antropóloga, doutoranda pela UFPA, desenvolve pesquisa sobre mobilização social na Amazônia, feminismos, corporalidades políticas e violência.