Bemdito

A lembrança de Suzanne, um apelo à humanidade e o desejo do corpo

A relação entre Suzanne Hommel, paciente de Lacan, na costura com o tempo, o espaço, o corpo e a humanidade
POR Carolina Mousquer Lima

Suzanne Hommel foi paciente de Lacan. Ela nasceu na Alemanha em 1938 e viveu todo o horror da segunda guerra. Escrevo o horror, no singular e com artigo definido, porque um povo perder sua humanidade é o grande horror. O que acontece, como efeito dessa perda, são as violências escrachadas  – plurais e intermináveis.

Quando ela perguntou se podia se livrar do sofrimento que essas memórias causavam, havia algo no olhar de Lacan que lhe dizia que não. Ela precisaria viver com essa dor para o resto da vida. Nada seria capaz de lhe arrancar esse sofrimento. Faz sentido. Há algo de intransponível e insuperável em certas dores. Tudo o que podemos fazer – e não é pouco – é aprender a viver com elas. Mães que perderam filhos sabem do que estou falando.

Um dia, Suzane contou um sonho a Lacan. E disse: “Acordo todo dia às 5h. Era às 5h que a Gestapo vinha procurar os judeus em suas casas”. Lacan imediatamente levantou da sua poltrona e passou suavemente sua mão sobre o rosto de Suzanne, fazendo um geste à peau, gesto na pele. Lacan transformou a “gestapo” – polícia secreta do exército nazista – em “gesto na pele”. No documentário “Um encontro com Lacan”, Suzanne conta essa história e diz: “(…) Um gesto extremamente carinhoso. E essa surpresa não diminuiu a dor, mas fez outra coisa. A prova, agora, 40 anos depois, é que eu ainda sinto esse gesto, eu ainda o tenho no rosto. É um gesto também… é um apelo à humanidade, qualquer coisa assim”. Um apelo à humanidade. Apelo que se faz com a palavra, mas através do gesto, corpo presente. 

Corpo presente. Aqui cabe nos perguntarmos: por que usamos essa expressão de forma pejorativa? Dizemos que alguém está “só” de corpo presente. Como se oferecer a presença do corpo fosse pouco. Refugiar-se no pensamento e ausentar-se do mundo das coisas têm um papel muito importante no nosso desenvolvimento. É o que nos permite criar hipóteses, lidar com as contradições, ter ideias, complexificar o pensamento. É uma espécie de companhia que fazemos para nós mesmos. Um corpo presente às vezes é, inclusive, tudo que o outro pode ter de nós. E isso já é muito. Quantos relatos de pessoas que foram torturadas podem confirmar isso? Deixar “só” o corpo presente, em situações extremas, pode ser uma forma de suportar o agora, de manter-se vivo. 

Mas essa expressão aponta que para estar efetivamente presente é preciso que o corpo não esteja abandonado no espaço. Portanto, o corpo não é, de forma nenhuma, algo menos importante – como quase chegamos a acreditar ao superestimar a vida intelectual. Hans Ulrich Gumbrecht escreveu sobre isso no livro “Produção de Presença – o que o sentido não consegue transmitir”. O autor parte do princípio de que a modernidade criou modos de ser no mundo nos quais prepondera o sentido, em detrimento da presença – que seria essa relação com as coisas do mundo que passa, necessariamente, pelo corpo e pelo espaço. O livro é uma espécie de manifesto por nos tornarmos mais sensíveis ao modo como nosso corpo reage ao mundo, aos outros corpos, ao que é dito, apostando que isso possa produzir mais presença.

A poesia seria uma experiência que reúne, ao mesmo tempo, efeitos de presença e de sentido. Ao ler um poema, há o sentido das palavras, mas há também algo que passa pelo ritmo e pela musicalidade, nos afetando corporalmente em um além do sentido. Retornando ao geste à peau, o que a práxis lacaniana produz é justamente esse efeito de presença, indo um passo além do sentido interpretativo freudiano. 

Antes de estudar Psicanálise, aprendi isso em família. Quando alguém  está por muito tempo com a cabeça nas nuvens, minha mãe diz: “volta pro corpo”. Essa expressão serve para lembrar – à ela e aos outros – que a vida não acontece só dentro da gente. Ela acontece no aqui e agora do corpo, no mundo das coisas, na relação com os outros. A comida que nos dá prazer não se cozinha pelo poder da mente. O desejo move montanhas, mas sem o corpo em movimento não vamos nem até a pracinha do bairro. A vida e os encontros passam, necessariamente, pelo corpo. 

Na origem da Psicanálise, o corpo denúncia das histéricas – adoecendo sem causas orgânicas – apontou para Freud a necessidade de dar a palavra às mulheres. A experiência de estar em um corpo é sempre singular e é disso que se ocupa um psicanalista. Mas ser em um corpo negro ou em um corpo branco, no Brasil, não é algo de menor importância. O que pode soar como novidade ao corpo branco heterosexual – que  o estado queira sua morte – é a política de todos os dias aos corpos negros e homossexuais. Um sujeito não é só um corpo, mas é, também, um corpo que circula em uma cidade, de um determinado tempo, carregando uma certa história.

A lembrança de Suzanne – Gestapo – me lembra que Freud também sentiu no corpo a sanha de um estado genocida. Quando ainda morava em Viena, teve a casa invadida pela Gestapo. Roubaram seu dinheiro. E levaram sua filha, Anna, para ser interrogada. A Associação Psicanalítica Internacional, fundada por Freud, era considerada suspeita de ser um movimento antifascista. Horas de agonia até Anna voltar viva do interrogatório.

Com a ajuda de sua fiel amiga, Maria Bonaparte, Freud pôde exilar-se em Londres com a família. Antes de ir, porém, foi obrigado a assinar um documento declarando que a Gestapo não havia maltratado sua filha. Nesse momento, suas armas foram a genialidade e a ironia. Ele acrescentou, afrontosamente, na carta: “recomendo a Gestapo a todos”. Corta para 2021 e o psicanalista Christian Dunker está precisando responder se é compatível que psicanalistas sejam de extrema direita.

O passado é o lembrar, o futuro é o imaginar e o presente é o tempo do agir. Em respeito ao passado e como aposta na existência de um futuro, o presente é tudo que temos nas mãos. E o presente, hoje, são os tanques de guerra, decrépitos, na rua. É a Amazônia queimando. São quase 600 mil mortos. 

Acordar e abrir os olhos para ver isso. E levantar o corpo da cama, retirá-lo da sonolência e carregar, com pernas, braços e boca o sonho para a rua, para todos os lugares que ocupamos com os nossos corpos. O sonho de viver um mundo democrático, sem fome, antirracista, com igualdade de gênero, respirável e bebível. Não importa o peso que isso tenha. Desejar a mudança com todo o corpo. Usar as mãos. Riscar, como canta a Gal, outro fósforo, outra vida, outra cor.  Não importa o nome que os fascistas darão a isso. Pois sabemos o nome que isso terá na história: humanidade.

Ter um corpo e prestar continência somente ao que faz  apelo à nossa humanidade.

Carolina Mousquer Lima

Carolina Mousquer Lima é psicanalista, especialista em Psicanálise e mestre em Psicologia Social pela UFRGS.