À luz da lua e aos espelhos da alma
Escrevo este texto em retrospecto: nosso clube do filme escolheu, durante duas semanas de 2020, filmes que nos ajudassem a pensar e, principalmente, a sentir as dores e os protestos relativos à morte de George Floyd, nos Estados Unidos, e a todos os acontecimentos subsequentes à essa tragédia.
De 29 de maio a 3 de junho do ano passado, nos debruçamos sobre a questão das vidas negras e a quem elas realmente importam. Para aquelas duas semanas, escolhemos a companhia de seis filmes: Corra!, Malcom X, What happened Miss Simone?, Branco sai preto fica, American Son e Moonlight.
Como mencionei na primeira frase deste texto, escrevo, hoje, sobre dias intensos e tristes que vivemos, há mais de um ano – já estamos em meados de 2021 – e, com essa coluna na ponta dos dedos, a memória exata daquilo tudo já me escorre do alcance das mãos.
Por isso, não me atentarei aos fatos, ou às falas, ou mesmo às conclusões (caso tenhamos chegado à alguma). Agarro-me aos afetos, à água, ao elemento lunar e difuso: falarei sobre o filme Moonlight (À luz do luar, 2017), com direção de Berry Jenkins.
A verdade é que eu nunca me oporia a um protesto, ou calaria uma voz em situação de vulnerabilidade, ou, sequer, faria algum barulho para lembrar ao som sobre a minha existência ou minha presença se eu estivesse perto de alguém que vela e chora um corpo amado que se foi pelas vias da brutalidade e da intolerância. É exatamente assim que me sinto – tantos meses depois -, carregando o peso de um silêncio que ouviu muito pranto e muita dor.
Mas, também, não posso fingir que não sinto o incômodo rugir desse tom grave da percepção humana aguda: estamos, novamente, mergulhados em um silêncio de cansaço e apatia – estamos cercados de água por todos os lados e foi ela que engoliu, lentamente, dia após dia, desde maio passado, cada grito e cada vontade de lutar. Estamos submersos. Por quanto tempo ainda seguraremos o ar?
Há batismos, e água, e desejo e medo na história de Chiron – protagonista do filme Moonlight. Ele cresce junto ao mar, a água que convida é a mesma que aterroriza. E é a mesma que lava. E é a mesma que afoga. É a mesma água que traz, pelas ondas mnemômicas dos sonhos, o homem que ele amou um dia e para sempre. É a mesma água que limpou e que ainda vai limpar o sangue em seu rosto de menino e de homem.
Durante sua história, Chiron veleja entre viciados em crack que, feito náufragos, são atirados às praias alheias da vida. Aprende a içar as velas e os punhos – controlando as águas turvas da inadequação e o lodo da falta de amor. Chiron enfrenta os grandes e singra os mares internos com a mesma audácia dos temidos piratas. E com a mesma paixão. E a mesma água que o afoga e afronta recebe sua garrafa/mensagem e nela guarda protegida sua mais pura e singela mensagem de amor e humanidade.
O que aprendemos com aquelas semanas de fogo e de protestos? O que aprendemos com Chiron, que observava a luz da lua, desenhando na água o seu próprio reflexo? O que aprendemos: o que precisa ser desmantelado, que seja dado ao fogo – que renova através da destruição. E aprendemos que a destruição, mesmo não sendo boa em si, serve como um último recurso àqueles que já se afogaram em pavor e desespero.
Mas, o que precisa ser construído, que seja dado à água e ao olhar silencioso da materna lua. Que cultiva e embala com calma, regando, por anos a fio, aquilo que será líquido e vivo e de uma humana composição que um dia seja digna desse nome.
O que Chiron vive, o que Chiron vê, o que Chiron sente – sentimos todos, mas, no hoje, ele sente mais forte, de maneira mais brutal. Que os seres de fogo lutem em prol daqueles que são feitos de água – para que esses não se desfaçam em prantos nos rostos ou em sangue no chão. Que eles sejam nossos espelhos e que brilhem quando expostos à luz da lua. Que brilhem – feito o reflexo da água quando se agita e quando dança ao vento. Sob a luz da lua, lutamos com fogo e curamos com água – Chiron, eu, você e todos nós.