Assunto de família: as relações e o inconsciente
“Eu não sei mais nada para ensinar a elas”. Essa é a resposta de Osamu, personagem do filme Assunto de Família, diante da pergunta: “você não sentiu culpa por fazer crianças furtarem lojas?”.
Ao longo da narrativa, o espectador testemunha todo o afeto e cuidado que Osamu, ao seu modo, é capaz de dar às crianças. Em razão disso, a cena nos desperta o desejo de entrar no filme e dizer que ele ensinou muito mais do que pequenos furtos.
Existe uma grande diferença entre o que queremos ou podemos ensinar e o que, de fato, acabamos por transmitir.
A transmissão tem a ver com isso que aprendemos, sem que alguém tenha tido a intenção consciente de nos ensinar. Por isso, acabamos sendo capazes de ensinar o que não sabemos, o que não sabemos que sabemos e até o que não gostaríamos de ensinar.
Para entender como isso acontece, precisamos falar sobre o descompasso entre a ação consciente, intencional, e o efeito provocado por ela. Há várias formas de se comprovar esse desencontro no cotidiano. Quando, por exemplo, queremos dizer uma coisa e acabamos dizendo outra. Isso acontece porque nenhuma ação é apenas consciente.
Há algo que fala em nós através das palavras e também dos gestos. Quando isso que está fora do nosso controle toca em algum ponto da outra pessoa são criadas as condições para que algo se transmita, ultrapassando a esfera cognitiva.
Outro detalhe é que nunca saberemos previamente se isso afetará ou não o outro e com qual parte da história o outro se enlaçará. Por isso, o que se transmite, e mesmo o que restará como aprendido de uma relação, não temos como saber antes, mas só depois. Osamu transmitiu aos filhos a capacidade de amar. E isso é o que de mais valioso ele poderia deixar de herança. A capacidade de amar não se ensina. Só quem foi amado é capaz de transmiti-la.
Pais e filhos
Retornando a Osamu. “Eu não sei mais nada”. Qual é a importância de ter pais que assumem que seu saber é restrito? Se os pais se colocam nesse lugar enganoso do “sabe tudo”, a tendência é que os filhos sejam tratados como adereços, produções em série, e vivam pateticamente orbitando ao seu redor.
É o não saber dos pais que abre aos filhos a possibilidade de buscar respostas fora da família, expandindo o interesse pelo mundo, abrindo portas ao desejo de fazer diferente do que os pais fizeram. Só pais que amam são os que suportam e autorizam que os filhos desejem outra coisa, tenham outros interesses, queiram fazer diferente. É isso o que acompanhamos, poeticamente, no desenrolar do filme.
Aliás, em tempos de tantas certezas e especialistas em todos os assuntos, cabe a pergunta: por que resistimos tanto a assumir o que não sabemos? Se é justamente a partir do que não sabemos, ainda, que a nossa curiosidade por descobrir ganha espaço e o mundo avança? A vida sem a curiosidade empobrece.
E se essas questões ainda não despertaram a curiosidade de ver ou rever o filme, trago mais duas perguntas: do que é feita uma família? Será que não supervalorizamos os laços sanguíneos, como uma espécie de garantia de coesão? Acho que precisamos pensar a respeito. Afinal, muitas canalhices foram feitas no nosso País em nome do “sangue do meu sangue”.