Blade runner e as lágrimas na chuva
Filme questiona a possível dissolução entre o natural e o superficial, em uma revolta contra a brevidade da vida
Ricardo Evandro S. Martins
ricardo-evandro@hotmail.com
Ao contrário do que se pode pensar, um filme de ficção científica pode ser mais do que mera fantasia, devaneio pop ou pueril, delírio de um futuro distante, que logo ficará datado, fruto da indústria cultural de massa. Ficção científica trata muito mais de um presente do que de um futuro. Trata mais de um real atual.
As linhas divisórias entre o passado e o futuro, o natural e o artificial, o sonho e a realidade, ficam em xeque por este gênero. O que é o real? E o que há de fictício na narrativa que pretende ser de verossimilhança científica? Em verdade, é próprio do cinema e de todas as demais artes a potencialidade de nos colocar sempre no estado de dúvida cartesiana, a dúvida sobre o que é a realidade.
Mais que mera imitação da imitação, que a natureza faz a partir do mundo ideal, a arte pode ser uma via de possibilidade de um outro real, ou, até mesmo, uma via de se falar melhor sobre a nossa realidade, melhor ainda do que a Filosofia ou a Ciência poderiam fazê-lo.
Talvez seja isso que o clássico Blade Runner (1982) e a sua continuação recém-lançada, Blade Runner 2049 (2017), venha nos trazer: o questionamento sobre a possível dissolução das fronteiras entre o natural e o artificial; o que é ter alma, ser humano; uma antiga revolta humana contra a brevidade da vida; e o diagnóstico do “tempo do niilismo” (Benedito Nunes), enquanto decadência do projeto humanista, dominação da tecnologia, crepúsculo do Ocidente, desejo parricida contra Deus.
Talvez esses filmes sejam ensaios filosófico-poéticos, enquanto tarefa de se fazer um pensamento sobre essa obra marcante de Ridley Scott, adaptação para o cinema da novela de Philip Dick, Androides sonham com ovelhas elétricas? (1968). Pensar sobre lágrimas em meio a uma chuva é a metafórica do ato de linguagem (Benedito Nunes) – próprio do universo original de Blade Runner -, por meio do qual a obra, aqui, pode ter uma verdade filosófica, ou, ainda, ontológica e teológica, a nos dizer.
No seu universo chuvoso e sujo, carros voadores, chineses, hare krishnas e punks (Wayne Morrison) ocupam as ruas da Los Angeles “do futuro do pretérito” dos anos 80. E tudo isto ao som da trilha conceitual de Vangelis, feita com sintetizadores, futurista, mas romântica e nostálgica, na limiaridade mesma que a sua origem grega representa, estando entre o Ocidente e o Oriente, sendo o berço da investigação filosófica ocidental – e é quase uma obra à parte do filme.
Um blade runner é um caçador de androides. Não de meras máquinas de aço, de funcionamento mecânico, mas, sim, daqueles chamados de replicantes. Aqueles que foram feitos para o trabalho, submissão sexual, e que possuem uma força extraordinária, produto de antropotécnica. São super-escravos, proibidos de retornar para a Terra, já há um tempo abandonada pela elite humana, que, analogamente aos replicantes, também não mora mais por aqui.
No primeiro filme, de 1982, o enredo gira em torno da procura do caçador de androides, Deckard (Harrison Ford), por quatro replicantes, que conseguiram fugir para a Terra. Eles vieram em busca de um encontro com o seu criador, o cientista e dono da empresa que os fabricou, Tyrell. No meio do caminho, em sua caçada, Deckard conhece Rachel, personagem feita pela atriz Sean Young. Ela interpreta a replicante que acredita ser humana, devido ao implante de memórias falsas da falecida sobrinha de Tyrell.
Rachel é um importante personagem junto a Deckard. Ela se submete a um “teste de empatia” por ele, para verificação da sua humanidade. Rachel talvez possa figurar como símbolo de uma pretensa nova natureza humana, talvez de um novo “parque humano” (Peter Sloterdijk), numa era pós-humanista. Ela não é violenta, nem fora produzida para o trabalho. Era um protótipo de replicante com identidade humana, pois foi forjada no passado muito realista de uma pessoa que “existia”.
Assim, nesta narrativa policial, de estética noir, cyberpunk, Deckard procura saber os motivos deste retorno dos androides para “aposentá-los”, tirá-los de circulação – já que não podem ser assassinados, pois só humanos o são. Replicantes são invalidados como se fossem uma forma de vida desqualificada, uma espécie de simulacro, uma vida nua, como se fossem outra forma de homo sacer (Giorgio Agamben), mas na forma, agora, de androide já passível de ser morto, também sem que seja assassinato.
Em Blade Runner 2049, Deckard retorna. Agora, capturado por uma trama mais complexa, envolvendo um novo caçador de androides, num desenvolvimento do enredo que repete uma das questões mais fundamentais do ensaio poético-filosófico que é o filme, repetido na sua continuação: afinal, o que é ser um replicante? Pergunta importante, porque a sua resposta implica em perguntar também: o que é ser humano?
Se a arte é uma verdade pronta para ser interpretada, compreendida pelo esforço de perceber o que talvez já saibamos, mesmo antes de seu desvelamento (Hans-Georg Gadamer), então Blade Runner é uma dessas obras que são fonte da verdade. Fonte de uma possível resposta para o sentido do nosso ser e o sentido para o não-ser, o sentido de uma forma de vida.
Assim, talvez possamos entender melhor uma das cenas emblemáticas feitas pelo ator holandês Hutger Hauer, há pouco tempo falecido. No papel de Roy Batty, o mais violento de todos, e o líder do bando de replicantes, rebelados contra o “criador” – de quem buscavam uma “reforma” de suas formas de vida, isto é, mais tempo de viver –, Hutger improvisou o seu próprio roteiro com uma das falas mais marcantes do filme.
Já nas últimas cenas, em tom azulado, no topo de um edifício, sob a chuva, uma pomba branca em sua mão perfurada, como um messias – que renunciou a disputa mimética (René Girard), vinda da sua inveja e do ressentimento pelo tempo de vida dos homens -, depois de ter salvado Deckard, seu caçador-perseguidor, da queda, filmado de baixo para cima, Hutger diz:
“Eu vi coisas que vocês, homens, nunca acreditariam. Naves de guerra em chamas na constelação de Orion. Vi raios-C resplandecentes no escuro perto do Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”.
O replicante talvez estivesse nos dizendo que, por mais que tenhamos visto coisas extraordinárias, como o amor por alguém, a alegria de ver um filho nascer, um momento em meio à terrífica natureza, a morte e sua consciência, sua aceitação – enquanto limite de nossas possibilidades existenciárias (Martin Heidegger), talvez seja o evento no qual nossas lágrimas, feitas de água, sal, memória e sentimento, esvaem-se como vapor. Lágrimas essas que são absorvidas pela pele, deixando os antigos mistérios do ser, da natureza física e da linguagem subsistirem na pergunta pelo paradeiro de nossas memórias na hora da morte. Isso nos leva a querer saber ainda sobre a nossa importância da aventura de se ser – e mais: sobre o mysterium burocraticum do que nos faz humanos (Agamben) -, numa época niilista e tecnológica.
Enfim, revela-se a angústia pela total consciência de que a nossa forma de vida, um dia, irá se dissipará na natureza, voltando ao estado de não-vivo, ou de não-existente, não-humano. Ou, talvez, como no slogan da indústria de Tyrell: More human than human.
Ricardo Evandro Martins é doutor em Direito e professor da Universidade Federal do Pará. Está no Instagram.