Carnaval pós-gripe espanhola: uma anedota sobre a urgência antecipada
Reza a lenda que o carnaval pós gripe espanhola foi a maior suruba apocalíptica de todos os tempos. Em Metrópole à beira mar (Companhia das Letras), Ruy Castro documentou o acontecimento que assolou o Rio de Janeiro em 1918. Eram tantos os casos que faltavam até coveiros. As carroças recolhiam os defuntos empilhados nas calçadas e havia quem fosse enterrado vivo, agarrado a vida com a respiração por um fio, inspirando junto aos mortos à iminência do fim.
Já os que se foram pela Covid em seu ápice tiveram como destino o saco preto, a invisibilidade diante do temor e da gravidade da doença. Um pouco mais asséptico, mas nem por isso menos trágico, porque morrer no Brasil, além de caro, também é desigual. Estou falando de valas comuns e rasas a dois palmos do chão.
Falo da da pandemia em um tempo passado como artifício de linguagem distante da realidade, agora que todos respiram minimamente aliviados o único alívio possível diante das secas, da crise econômica, de um rastro de miséria que, se não for bem administrado, perigo de alastrar como tumor.
Há um outro passado muito distante que serve como anedota para isso que nos passa: a epidemia de dança na Idade Média, mais conhecida como a Praga de Estrasburgo, onde centenas de pessoas dançaram por meses seguidos, alucinadamente, até caírem estateladas no chão. Os médicos da época atribuíram o surto a um excesso de sangue quente, enquanto que os historiadores interpretam o episódio como uma espécie de catarse decorrente de um sofrimento excessivo: fracassos na colheita, aumento do preço do trigo e miséria generalizada.
Como se vê, a tragédia é da ordem do mundo,
embora não possa ser naturalizada, já que somos cada vez mais responsáveis pelas nossas catástrofes, que, longe de serem promessas, já se anunciam como realidade.
Basta que se olhe para a imagem das Cataratas do Iguaçu nos últimos tempos. A segunda maior queda d’água desse mundo já não cai.
O futuro virá sedento, sem respingar de dúvida.
Antes de terminar esse texto com dor nos ombros, retorno ao Ruy Castro, à gripe de 1918 e a possibilidade de alegria nos escombros. Viver é urgência e os foliões daquele ano, os mais (ins)urgentes de todos os tempos, na beira da vida no encontro com a morte, resolveram por decreto que o carnaval seria antecipado em três meses. A marchinha guia na subida dos morros, cantarolava o seguinte:
“Quem não morreu de Espanhola
Quem dela pôde escapar
Não dá mais tratos à bola
Toca a rir, toca a brincar”
Me encanta pensar na possibilidade de qual seria a marchinha, um hino comum e uníssono para um futuro breve, onde seja possível viver alguma catarse em esquecimento, pois esquecer é viver um pouco de saúde, agora que o mundo nunca deixa de lembrar.
Você, leitor, que hino entoaria em homenagem à sobrevivência?