Copan, microcosmo da política brasileira #3
Os limites entre a vida privada e a gestão da vida comum
Rodrigo Iacovini
rodrigo@polis.org.br
Você pendura uma guirlanda na porta da sua casa na época do Natal? Ou talvez um papai noel maroto? Há também quem goste de colocar a imagem de alguma entidade protetora, um olho turco para proteção ou até mesmo apenas um adorno puramente estético. No Copan, alguns desses itens são aceitos, outros, não. Mas o que é permitido e o que não é? A quem cabe essa decisão?
Tenho que confessar para os leitores que não me conhecem: sou viciado em post-its – aquele papelzinho colorido e autocolante usado para recados e lembretes – e adoro usá-los para montar formas e desenhos na porta de casa. No final do ano, por exemplo, geralmente construo uma árvore de natal em mosaico com eles. Em novembro de 2020, desenhei um “B 50” na minha porta, como forma de apoio à candidatura de Guilherme Boulos à Prefeitura de São Paulo. E então descobri que as perguntas acima não têm respostas claras e objetivas, tendo em vista a retirada dos post-its sem o meu consentimento pela administração do condomínio.
Inicialmente, havia sido apenas informado por um dos porteiros de que deveria retirar os post-its da minha porta, pois seria proibido qualquer enfeite. Contestei a informação, afirmando que não retiraria, tendo em vista que outras portas do edifício também estavam adornadas. Menos de 24 horas depois, outro porteiro tocou a campainha e insistiu que eu deveria retirá-los, pois seria contrário à convenção de condomínio. Novamente, expliquei que não retiraria, já que ainda não havia sido oficialmente notificado pela administração, e falei que aguardaria uma comunicação por escrito que contivesse a devida justificativa. Se fosse comprovadamente o caso, acrescentei, poderiam até mesmo aplicar uma multa cabível pelo desrespeito à convenção.
Logo depois, precisei ir ao supermercado. Fui surpreendido ao abrir a porta e constatar que haviam retirado os post-its à minha revelia. Apesar do estado desértico da minha geladeira, reagendei o supermercado para poder produzir um novo mural de post-its e uma estratégia de campanha. Agora, em vez de B50, constava um B seguido pelo desenho de um grande bolo em camadas, com direito a recheio e velas.
Em seguida, comecei uma série de postagens no Instagram, registrando o que acontecia e incluindo fotos de uma série de outras portas enfeitadas. Sim, tive a pachorra de percorrer a extensão completa dos corredores de cada um dos 32 andares do bloco B do Copan, olhando para a entrada de cada um dos seus 20 apartamentos. Depois de visitar as 640 portas do meu bloco, possuía agora o registro fotográfico de 96 portas enfeitadas – ou seja, 15% do total de unidades do bloco.
Conforme previa, apenas um dia se passou e recebi outra solicitação de retirada. Dessa vez, contudo, perguntei se o mesmo pedido estava sendo feito aos outros 95 apartamentos com enfeites. Como a administração havia incumbido mais uma vez um porteiro de realizar o comunicado de forma extraoficial, ele não dispunha dessa informação. Pedi que reiterasse à chefia minha solicitação de um comunicado por escrito e que incluísse ainda informações sobre o envio do mesmo comunicado às outras unidades. Até hoje, mais de seis meses depois, ainda não recebi qualquer correspondência sobre o assunto. Por outro lado, meus post-its não foram mais retirados. Todos os outros 95 apartamentos continuam com seus adornos. Ponto para mim? Não necessariamente.
Dois meses após o incidente, quis subir ao terraço do edifício para me exercitar, quando fui informado de que não teria permissão. Apesar de muitos moradores do Copan não saberem, é possível utilizar o terraço na cobertura para a realização de exercícios, desde que apresentado um atestado médico; e, segundo eles, o meu estaria vencido. Aproveitei que teria consulta com o meu psiquiatra para pedir que me fornecesse o documento.
Ao receber o atestado, a administração tomou a liberdade de entrar em contato com o meu médico para saber se haveria risco à minha vida caso liberassem o acesso, sob uma pretensa preocupação de que o local se situa a 115 metros de altura (detalhe: moro no 15º andar, a mais de 50m de altura). O absurdo foi tamanho que o meu psiquiatra imediatamente entrou em contato comigo para perguntar como gostaria que ele procedesse. Autorizei que informasse ao edifício que eu não pretendia cometer nenhum atentado à minha vida e, assim, fui novamente autorizado a frequentar o espaço comum do edifício. Por que então trazer estes relatos? Qual é a conexão entre eles?
Ambos os casos que vivenciei aqui demonstram a dificuldade de enxergar as fronteiras estabelecidas entre a vida privada do morador e a dimensão comum da vida em condomínio. Até que ponto, em nome da gestão da vida comum, pode a administração interferir na vida privada do morador? A convenção de condomínio proíbe o uso de enfeite nas portas por causa de uma suposta necessidade de padronização do espaço comum do edifício. Essa padronização garantiria um espaço pretensamente ascético, isento de materiais ofensivos que incomodem os demais moradores.
Contudo, essa regra parece não se aplicar a portas com crucifixo, com presépios, com santinhos, com olhos turcos, com gatinhos, com placas de boas-vindas; apenas deve ser aplicada aos meus post-its políticos. Deixo claro: não quero que ninguém perca o direito ao papai noel na porta, pelo contrário. Como urbanista, defendo que, quanto mais os cidadãos estejam apropriados e possam eles mesmos interferir nos rumos das cidades, mais cuidarão dela. O mesmo se passa com o espaço comum dos edifícios.
Não argumento em causa própria (ou não somente). Envolver cidadãos e moradores nas decisões de cidades e edifícios é a base da construção de relações afetivas e políticas sustentáveis. No Copan, trata-se de atender à histórica solicitação de um bicicletário, para que os moradores de apartamentos de 30 e poucos metros quadrados não precisem escolher entre a bicicleta e um armário. Seria contratar mulheres para trabalhar no edifício, cuja equipe de mais de 100 funcionários é exclusivamente composta por homens e, assim, se configura um ambiente muitas vezes hostil às moradoras.
Não é fácil a tarefa de administrar a vida comum, ainda mais quando se trata de um ambiente com milhares de vidas, necessidades e visões de mundo diferentes envolvidas. No entanto, essa tarefa se torna mais efetiva quando realizada de forma democrática: ou seja, na busca por encontrar coletivamente o equilíbrio entre o individual e o comum, o privado e o público. Como as fronteiras entre essas esferas são dinâmicas e permeáveis, esse exercício de reflexão deve ser permanente e ocorrer na esfera pública comum do condomínio e da cidade. Espaço e política estão profundamente imbricados, por isso a sua gestão também deve estar.
Rodrigo Faria G. Iacovini é urbanista e coordena a Escola da Cidadania do Instituto Pólis. Está no Twitter e Instagram.