Bemdito

De onde venho, nada é pra sempre

Em um término de relacionamento, o luto pode até se recusar a acabar, mas uma hora passa
POR Jamieson Simões
Foto: Conor Samuel

Em um término de relacionamento, o luto pode até se recusar a acabar, mas uma hora passa

Jamieson Simões
jamrsimoes@gmail.com

Nunca mais tinha recebido notícias dela. Não queria saber, e as amizades ajudavam não divulgando o paradeiro da dita cuja. O que acho pior no fim de uma relação é ter que inventar outra geografia. É como se o corpo da outra pessoa e a cartografia da cidade se fundissem em sentido, cheiro, memórias. Tudo lembra que você já esteve ali, acompanhado da solidão ou de outra pessoa. E Fortaleza é uma cidade pequena, como vocês já sabem. Não saber se estava se alimentando, se tinha entregado as demandas do trabalho, se já estava em outros braços, também é uma forma de presença. E eu caminhava torto porque tudo sobre ela era doído. Não saber dói. O inferno é não saber. Foi nesse período que parei de andar de carro. Ela não estava mais comigo, mas era só ligar o carro e um espectro se sentava no banco do passageiro. Ligava o som e as músicas eram todas dela.

Um convite que eu não podia recusar aconteceu. Não era o convite em si, mas quem havia feito. Uma festa com público mais reservado e já assegurado que ela não havia sido convidada e nem apareceria (um dos boys estava na cidade e, de tanto não saber, a gente acaba sabendo). Banho tomado, roupa amassada e aquele querer-não-querer no peito. Vou para a tal festa.

Luzes coloridas, banda tocando. Atravessava o salão me sentindo todo errado. Eu cumprimentava as pessoas, mas o sorriso não brotava. Fui me esconder atrás da moça que fazia malabares e cuspia fogo. Fiquei ali naquele escuro flamejante e tentava a todo custo não ser visto. Podia algum desavisado falar sobre ela, ou pior, uma desavisada me chamar pra conversar. Eu nem devia estar ali. Enquanto isso, no som:

– Onde está você? Apareça aqui para me ver, vou gostar demais…

Que gatilho! Quis ir embora, mas alguma coisa me disse pra ficar. A moça do malabares ficou do meu lado e insistiu que eu tentasse lançar e manter as garrafas no ar. Era a metáfora da minha vida. Manter as coisas em suspenso num equilíbrio frágil e impossível. Eu não aguentava aquele tranco. Não bancava meu desejo. Eu só queria que parasse de doer. Na minha cabeça, já estava tudo certo, cada um pro seu lado da cidade, com suas dores e seus amores. Tudo certo. Mas minha cabeça ainda rodava, e aquela dor estava virando inquilina no meu peito. Eu não aguentava mais. O colorido das luzes e uns acordes novos me fizeram um chamado. Agradeci a companhia da moça e fui pro meio do salão. Então um milagre-mudança-epifania aconteceu. Daniel Medina no microfone cantava:

– Se quer discutir/ já não te escuto/ se quer se vingar/ não meça esforços/ você pode vencer a guerra/ eu não quero entrar pra história.

Fiquei arrebatado e tudo começou a acontecer quadro-a-quadro. Uma sucessão de imagens passando diante de mim e, a cada lembrança, a dor diminuía. Até que não restou mais nada. Magicamente, uma leveza pousou nos meus ombros como um passarinho. Eu entendi que um ciclo estava fechado. O passado às vezes se recusa a ir, mas de onde eu venho, tudo passa. Eu e ela passamos. A dor também.

Jamieson Simões é um corpo-negro no mundo com toda potência que isso implica. Está no Instagram.

Jamieson Simões

Pesquisador em juventude e violência, é assessor do Comitê Cearense de Prevenção à Violência da Assembleia Legislativa e mestrando em sociologia na UFC.