Bemdito

Deus e o mundo na fila do posto

Vacinar é gostoso demais! Coalhar na fila é outra história...
POR Felipe Pinheiro

Foi com tremenda alegria e satisfação cidadã que senti a terceira dose da vacina Pfizer ser encaçapada em meu bracinho. Quem me viu sair da sala de aplicação todo benfazejo, contendo o botão de sangue do furinho com um chumaço de algodão, meio lombrado pelo éter fulminante dos corredores hospitalares, não sabia da minha peleja a metade. Levarei comigo pro céu dos injustiçados – ou pro inferno dos merecidos, ainda não transitei em julgado – as mazelas enfrentadas até conseguir uma seringada. E vou sair contando também.

No alto meio-dia, decidido a ser um moço diligente antes de um moço alimentado, pulei o santíssimo sacramento do almoço e saí varando a cidade à procura de uma UBS carregada com doses – entre a alta demanda e a defasagem nos horários de atendimento, a situação pode ficar capciosa. 
Quando, depois de uma trinca de tentativas fracassadas, dei de encontrar um postinho abastecido e operante, coalhei por horas numa fila, suportando as tonturas da fome e os viscos do calor. Ali, escorado em paredes e corrimãos, metido no estirão de gente, sentindo caudalosas gotas de suor brotando na nuca e descendo pelo vale dorsal, tudo que eu mais cobiçava era o refresco de uma vacina bem geladinha.

Impacientado pelo oco da espera, saí atrás de remanso na paisagem de rostos à minha volta. Me solidarizei com o zelo relutante das mães das crianças – as crianças que tanto esperaram pela vacina; me enterneci com o zelo ansioso dos filhos de idosos – os idosos que já não podem esperar; e me entretive olhando as fotos, glaceadas por mil filtros, dos netinhos de uma simpática arquivista do posto, três pedacinhos adoráveis de gente, que o titio Felipe nem conhece ou jamais virá a conhecer, mas já quer um bem danado, e a quem oferendou um extenso rosário de “Benza Deus esses bichinhos!”, capaz de reforçar os pequenos com anticorpos espirituais até o fim da vida. Eram lindos mesmo, os bichinhos. Meus afilhados de coração.

Saía me refugiando nesses escapismos, sobretudo, pra conseguir abstrair a cara de pau, de madeira de lei, de quem não se conforma com o princípio universal de uma fila, que é esperar; a cara de pau da pessoa que, chegando ao posto e vendo o comprimento da demora, pergunta ultrajada: “A fila da vacina é ESSA??”, para o que ouve em uníssono retorno: “A fila é essa, sim, minha graça”. Então, contrariada e cheia das manhas, a pessoa se enfia nas instalações pra importunar funcionários com a mesma pergunta, e ouvir a mesma resposta, e se desmanchar em queixas melosas sobre um atoleiro de afazeres a cumprir, na malandra esperança de ser contemplada com atendimento preferencial; por nenhum motivo cabível, só mesmo pelo gratuito brilho dos olhos: “A fila é aquela, mas teu olhar nos conta algo de especial, logo, teu tempo vale mais que o dos outros. E daí se plantado lá fora está um condenado em jejum desde o estalar da manhã? Chegue, entre aqui, fure a fila. Uma espécime tão extraordinária vale a transgressão”.

Pra humilde alegria deste condenado em jejum desde o estalar da manhã, todo picareta era sumariamente despachado pra rabeira da fila, sob o olhar gaiato do estirão humano; um olhar de desforra e comunhão, irmanando todos aqueles estranhos em um sonoro, embora mudo pensamento: Ah coisa bem feita!

E eis que, muitos escapismos e desaforos depois, já expert em arquivística e com dois afilhados a tiracolo, o condenado pôde enfim brindar a alegria do atendimento com uma ejaculada de Pfizer geladinha no braço. E pude também lembrar.

Pude lembrar que cada entrada de seringa na carne é um beliscão de chamado, uma advertência para que eu nunca entregue a memória dos dois últimos anos ao lirismo reconfortante das figuras de linguagem, nunca relate os dois últimos anos em atenuantes poéticos, como se tivéssemos ‘navegado por uma tormenta’, ou ‘dormido um pesadelo’; mas fale que estivemos, e ainda estamos, acordados em uma catástrofe, indefesos em um massacre. Lembrar e chamar as coisas pelo devido nome.

Felizmente, aos que têm apetite pela vida, o que traz de advertência, a vacina também traz de alívio; e de carne furada e dever cumprido, tonteado por fome e éter, recarregado em ânimo e esperança, máscara na fuça, pude varar a cidade em caminho de volta, dessa vez no faro do almoço, embora já quase em horário de janta. Coisas da vida. Por uma ejaculada de vacina no braço, eu faço tudo outra vez.