Bemdito

Deus me proteja da tua inveja

Parece que a inveja é mais uma daquelas palavras que podemos reter ao léxico feminino, e a primeira inveja que nos atribuíram foi a do pênis
POR Paula Brandão

Parece que a inveja é mais uma daquelas palavras que podemos reter ao léxico feminino, e a primeira inveja que nos atribuíram foi a do pênis

Paula Brandão
paulafbam@gmail.com

Lina e Lenu são as amigas italianas mais conhecidas da literatura contemporânea. Protagonistas da tetralogia de Elena Ferrante, narrada desde tenra infância até a idade adulta delas, o enredo mostra a amizade em toda a sua nudez, afetividade e crueldade. Esqueça qualquer coerência nesse sentimento retumbante das duas, pois trata-se da tessitura de vários fios desconexos, que reafirmam suas identidades e dores como mulheres, numa comunidade pobre, violenta e masculina; a proteção recíproca e admiração; e a inveja que as consome como uma fogueira, que reaviva a amizade, fortalece e incinera. Não se trata das alianças românticas de determinadas leituras feministas, mas de seres humanos ricos em ambiguidades, desespero e solidariedade.

O sucesso não foi por acaso. Em uma mirada rápida nas redes sociais de mulheres, observo mensagens que revelam uma sororidade mais universal, e, em um plano mais pessoal, um recorrente temor do olho grande da outra, as recomendações de que o segredo é a alma do negócio, e que a inveja das amigas só aumenta o seu sucesso. Olhei ao meu redor e percebi quantos amuletos tenho pela casa. E você, quantos olhos gregos tem em anéis, colares, carro ou na porta de casa? Contra o que você se protege? Quantas pessoas te invejam e por quê?

Parece que a inveja é mais uma daquelas palavras que podemos reter ao léxico feminino. A primeira inveja que nos atribuíram foi a do pênis, e toda uma teoria da psicanálise gastou bastante energia para ratificá-la. Melanie Klein, em Inveja e Gratidão, diz que a pessoa invejada possui algo que é prezado e desejado. Para a invejosa, é um estado de infelicidade, pois é algo que acredita que jamais irá alcançar. Figura, pelas doses de maldade, entre o pior dos sete pecados capitais. Você admite que tem fome, ira, mas que é invejosa, duvido. A autora diz ainda que a inveja é aquele sentimento raivoso que alguém tem de desfrutar algo que é desejável, mas não lhe pertence, o impulso é de tirá-lo do outro ou de estragá-lo. Explico melhor.

Meu sonho quando criança era ganhar um pogobol laranja com amarelo – denuncia minha infância vivida nos anos 1980. E aconteceu! Ganhei e passei dias inteiros a pular por toda a casa. Passou a ser uma alegria quando mamãe me chamava, pois eu subia e ia até ela, pulando. Eis que chegaram primas distantes, daquelas que você só encontra uma vez na vida, para nunca mais. Não me dei bem com uma das primas e amei a outra, nessa coisa bem libriana que tenho de amar muito e com exclusividade. Não emprestava nunca o pogobol para aquela que eu não gostava. Eu não era obrigada! Ela chorava e dizia que o pai ia comprar um mais bonito que o meu. Na noite em que ela viajou de volta pra sua cidade, eu me despedi da vovó e fui buscar o meu objeto preferido. Estava em um canto, furado. O resto da história fica para a imaginação de vocês! Agora já sou adulta e “esqueci” essa mágoa dos meus oito anos.

Quando a gente cresce, entende que a inveja é um daqueles sentimentos ruins dos humanos, que ninguém ousa confessar nem no divã. Geralmente se sente por pessoas de idades aproximadas; de profissões semelhantes; e interesses comuns. São aquelas que quando chegam te dão uma “furada” com o olhar; que não curtem tuas conquistas; que secam a pimenteira da tua varanda; e que morrem de vontade de estar naquele lugar que você postou a foto, segurando a outra taça de Chandon.

As mulheres, desde pequenas, foram ensinadas a ter o pé atrás umas com as outras. A quem interessa alimentar a lógica de que não são sinceras, que promovem disputas entre si e que têm inveja umas das outras? Respire fundo e reflita: quantas vezes você já achou que a amiga estava de olho nas suas coisas, no seu sucesso e no seu boy? Eu perdi muito a esperança de que essa pecha fosse acertada algum dia quando vi uma feminista, enfurecida, detonando a amante do marido. Sempre é a mulher que quer tomar o marido da outra. Ao homem, é dado o benefício da dúvida, acrescido ao fato de ter a carne fraca e da sua natureza de conquistador. E seguimos, desconfiadas umas das outras, e sem refletir se isso realmente é verdade.

A história da degradação das mulheres e de seus vínculos é antiga. Silvia Federici, em Mulheres e Caça às bruxas, revela que uma simples palavra, gossip, hoje considerada fofoca, na Idade Média, aludia a uma amiga próxima, companheira íntima, ou seja, a pessoas que se reuniam para executar tarefas comunitárias, ou ainda que marcavam de tomar vinho em tabernas públicas, chegando de duas em duas, para não chamar a atenção. Quando voltavam pra casa, diziam aos maridos que tinham ido à igreja. Essa união não interessava aos tutores da época e, rapidamente, gossip deixou de remeter a essa solidariedade clandestina entre mulheres e passou a ser imputado um caráter depreciativo, como maledicência e conversa que levava a discórdia, conforme conhecemos hoje. Repense como ver as suas amigas, olhe-as com um olhar mais compassivo e afetuoso.

Vou fazer mais um parágrafo, para não terminar na conta 7 que é um número que atrairia o azar, e para quem é cismada, não quer nem gente invejosa nem má sorte por perto. O invejado usa superstições para que o olho grande não atravesse a sua positividade. Tem gente que põe esparadrapo no umbigo, reza nas costas do invejoso, vale-se do sal grosso. Eu não acredito nessas coisas. Escrevo com um colar de olho grego no pescoço, acendi um incenso de arruda antes de começar, e você precisa enviar essa coluna pra 12 pessoas. Se não o fizer, fique tranquila, nada vai acontecer! Você só estará quebrando uma corrente preciosa feminina, onde despejei toda a minha boa fé e alegria pra te fazer sorrir um pouco no meio desse caos. Boa sorte!

Paula Brandão é professora da UECE, doutora em sociologia e pesquisadora na área de gênero, gerações e sexualidades. Está no Instagram.

Paula Brandão

Doutora em Sociologia pela UFC, e professora do curso de Serviço Social (Uece). É pesquisadora na área de gêneros, gerações e sexualidades. Membro do Laboratório de Direitos Humanos e Cidadania (Labvida) e integra o Núcleo de Acolhimento Humanizado às Mulheres em Situação de Violência (NAH).