Bemdito

Fui ao teatro e não estava só

Brasil afora, cidades voltam a permitir o funcionamento de casas de espetáculos e o teatro vai recobrando a beleza dos encontros
POR Magela Lima
Foto: Guilherme Silva

As roupas de domingo, coitadas, não sabiam mais nem o caminho da rua. Foram meses e meses de convivência com a incerteza da retomada e o voto de confiança na criatividade. Sim, o teatro, tão afeito às convenções, teve que dialogar com outras mídias e plataformas de mediação para se expressar no isolamento imposto pelo enfrentamento da pandemia da Covid-19. Justiça seja feita, soluções lindas e poderosas brotaram dessa experiência de convergência. A verdade, porém, é que aquele teatro de pedra e cal, como as igrejas e os estádios de futebol, deixaram a gente com uma saudade danada. 

De repente, ir ao teatro foi algo profundamente transformado. Bastava um play no computador. Quando muito, um deslocamento da sala para o quarto ou até mesmo para o banheiro. A gente até podia convidar um amigo querido para uma sessão, mas a resenha da fila passou a ser uma conversa no WhatsApp. A gente até podia cruzar com outros públicos, com uma conhecida gente desconhecida, mas o burburinho já não era o de antes, era o das curtidas e dos Emojis. Tudo isso é teatro também, evidentemente, mas um teatro que não só mudou sua execução e veiculação, como, fundamentalmente, mudou sua recepção.

Mudar a plateia é mudar o sentido do teatro. Fisicamente e simbolicamente, falando. É, assim, que o teatro é um quando à italiana, outro quando elisabetano, outro quando de arena. O lugar do público, o espaço que a criação prevê para suas plateias, integra a própria linguagem. Quando excursionou pelo país com a caravana de “Os Sertões”, por exemplo, José Celso Martinez Corrêa levou na bagagem mais que sua leitura singular da obra de Euclides da Cunha, levou a réplica do teatro que a arquiteta Lina Bo Bardi projetou para a companhia no coração de São Paulo. A encenação e a recepção do Teatro Oficina são o que o jogo com aquele espaço autoriza ser. 

Em parte, a saudade do chamado teatro presencial tem a ver com essa sensação de que o ritual de ver teatro, momentaneamente, fez-se outro. Mais do que a proximidade física com a materialidade dos espetáculos, a carpintaria da cena e o suor dos atores, o teatro presencial confronta e aproxima o público com o próprio público. Muitas vezes, a emoção, o medo, o riso nem brotam do palco, mas, sim, da cadeira ao lado. No teatro, a gente sente com o outro, a gente reage junto, a gente vê e, também, é visto. Teatro é comunhão, teatro é partilha, teatro é certeza de encontro. Ir ao teatro, esse teatro com endereço fixo, carrega, pois, esse desejo, essa busca de, ao menos um instante, estar com um outro.

Ninguém vai ao teatro sozinho. Ir ao teatro é sempre aceitar uma companhia inesperada, que pode até não chorar ou rir no mesmo ritmo e intensidade, mas cuja presença vai transformar seu choro ou seu riso. Para além das questões de natureza técnica, de reorganização da própria performance para se ajustar aos mecanismos de mediação, a diferença mais sensível do teatro físico para o teatro virtual, do teatro presencial para o teatro remoto, reside, particularmente, nas restrições de diálogo no interior do campo da recepção. A distância palco-plateia parece ser reduzida, ao mesmo tempo em que a proximidade com o espectador do lado parece ser alargada. Curiosamente, a virtualidade favorece uma interação maior com os artistas e uma menor entre os públicos.

De todo modo, são muitos os indícios de que o teatro das telas, o teatro por streaming, como disse o diretor Aderbal Freire-Filho, pode ter chegado para ficar. A tendência é que esse caçulinha siga fazendo companhia aos demais formatos de expressão teatral, ampliando o público, antes restrito aos espetáculos presenciais, em movimento semelhante ao ocorrido com a transmissão de partidas de futebol décadas atrás. Ambos, futebol e teatro, compara Aderbal, são acontecimentos-espetáculo, um encontro entre os artistas (do gramado, do palco) e o público, sendo, assim, possível e até desejável, sonhar que, tal o futebol que já tem hoje muito mais público em casa do que nos estádios, o teatro possa vencer o limite das salas de espetáculos e alargar sua audiência.

Aceitar a emergência do novo, fortalecer a criação e a circulação de produções nos formatos que se tornaram mais evidentes agora, no contexto da pandemia, não supera, em absoluto, a comunicabilidade de outras formas de recepção. Ver circo na arquibancada sob a lona do picadeiro, afinal, é um espetáculo à parte. Nesse sentido, é muito bom o movimento de poder voltar ao teatro (espaço físico). É desafiador, mas confortável. De algum modo, a gente já domina essa possibilidade de recepção sem grandes sobressaltos. A gente não se move, necessariamente, por histórias, tipos ou desenhos de cena, mas pela certeza do encontro.  O outro logo ali, mesmo alheio, mesmo calado, mas presente, muda tudo. 

Magela Lima

Crítico e pesquisador de teatro, tem mestrado e doutorado em Artes Cênicas.