Bemdito

Liberdade para incomodar

Em entrevista ao Bemdito, Conrado Hübner Mendes conversa sobre liberdade de expressão, intimidação política e exercício de crítica
POR Juliana Diniz

Em entrevista ao Bemdito, o professor Conrado Hübner Mendes conversa sobre liberdade de expressão, intimidação política e exercício da crítica

Juliana Diniz
julianacdcampos@gmail.com

Conrado Hübner Mendes é um constitucionalista respeitado nos meios acadêmicos brasileiros. Professor da Universidade de São Paulo (USP) e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt, é doutor em Ciência Política pela USP e em Direito pela Universidade de Edinburgo. Escreveu obras que rapidamente se tornaram referência em matéria de jurisdição constitucional no Brasil e, como muitos outros professores que pesquisam e pensam sobre política e Direito, tem se dedicado a dialogar com um público mais amplo como articulista de opinião na mídia tradicional.

Sua crítica tem a virtude de aproximar o leigo interessado em política dos espaços cerimoniais e pouco acessíveis das instituições jurídicas. Depois de uma passagem pela Revista Época, assumiu um espaço semanal no jornal A Folha de S. Paulo, onde publica textos críticos ao Poder Judiciário e Ministério Público. A língua afiada rende ao professor mais do que bons argumentos: os cliques e compartilhamentos são expressivos. Graças a um apuro estilístico particular, Hübner usa seus neologismos e tiradas sarcásticas para desnudar autoridades vaidosas como ministros do Supremo Tribunal Federal e o Procurador Geral da República Augusto Aras, a quem fez duras críticas no artigo “Aras é a antessala de Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional”, publicado em 26 de janeiro deste ano.

Augusto Aras integra o bando servil. Enquanto colegas de governo abrem inquéritos sigilosos e interpelam quem machuca imagem do chefe, Aras fica na retaguarda: omite-se no que importa; exibe-se nas causas minúsculas; autoriza o chefe a falar boçalidades mesmo que alimente espiral da morte sob o signo da liberdade.”

Foi o dito artigo de opinião que ofendeu a delicada sensibilidade do representante máximo do Ministério Público, que não gostou de ser chamado de omisso. Em mais um episódio de intimidação, Conrado Hübner foi alvo de uma representação movida por Augusto Aras no Conselho de Ética da Universidade de São Paulo e de queixa-crime apresentada à Justiça Federal em que Aras atribui ao professor a prática de calúnia, injúria e difamação.

A reação da comunidade acadêmica em solidariedade a Conrado Hübner foi efusiva. A expressão “poste geral da república” se tornou trending topic no Twitter no Brasil quando a notícia da representação se espalhou, no início de maio, e documentos com milhares de assinaturas de professores brasileiros e estrangeiros manifestaram não só o apoio ao constitucionalista como à defesa da liberdade de expressão no Brasil.

Em entrevista ao Bemdito, Conrado fala sobre intimidação, exercício da palavra e sobre um dos mais importantes poderes que um cidadão tem em uma democracia: a liberdade para incomodar pela crítica.

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Bemdito // Em que se fundamenta seu direito de afirmar que Augusto Aras é o Poste Geral da República?

Conrado Hübner // Em um direito elementar do liberalismo, reconhecido em qualquer Constituição do mundo democrático, que é a liberdade de expressão. Não é um direito sem limites, mas entre esses limites não está a proibição de se criticar, muito menos o de criticar uma autoridade pública.

Bemdito //  Qual o limiar jurídico entre o humor, a crítica, o sarcasmo e a difamação?

Hübner // O humor e o sarcasmo podem servir, numa sociedade desigual, hierárquica e constituída por todo tipo de preconceito e modos de subordinação, para mascarar a intenção de humilhar e discriminar grupos mais vulneráveis. Deixa de ser humor. A difamação é o ato de expor uma certa pessoa ao ridículo. Casos de liberdade de expressão precisam prestar atenção nos detalhes de contexto, que dizem muito. Precisa-se olhar, sobretudo, para quem está falando e sobre quem se fala, e para as intenções ali presentes. É por aí que se começa a perceber o “limiar jurídico”.

Bemdito // O Brasil tem testemunhado a invocação da Lei de Segurança Nacional (LSN)  para intimidação de críticos do governo. Qual é o papel do Poder Judiciário e do Poder Legislativo na contenção desses abusos?

Hübner // O papel do poder judiciário é definir o que da Lei de Segurança Nacional pode ser harmonizado à Constituição democrática de 1988. E é possível dizer que, apesar de suas origens autoritárias, há alguns dispositivos que, na falta de lei melhor, podem ajudar a sancionar práticas que atentam contra as instituições democráticas. O papel do legislativo, claro, seria substituir a LSN por coisa melhor, por uma lei de defesa da democracia.

Bemdito //  Seu trabalho como articulista em veículos de comunicação de impacto nacional rendeu uma coleção de textos profundamente críticos a juízes, membros do Ministério Público e instituições como o Supremo Tribunal Federal. As reações nem sempre são amistosas. A que se deve a dificuldade de autoridades e instituições em lidar com a liberdade de expressão no Brasil?

Hübner // A uma cultura autoritária, à presunção de que existe uma honra especial e qualificada na autoridade pública, diferente da honra do cidadão comum, que precisa ser respeitada incondicionalmente. É uma forma de culto à autoridade, de deferência, de servilismo. 

Bemdito //  Qual a forma mais inteligente de reagir aos abusos de poder e intimidações quando acontecem para calar a crítica política?

Hübner // Não sei qual a melhor forma. Acho que se deve usar dos argumentos e meios institucionais para defender o direito à liberdade de expressão. A melhor forma certamente não é se calar. Mas para isso é preciso que instituições judiciais te protejam. Não há ambiente de plena liberdade quando temos medo de criticar alguma autoridade, quando pensamos no risco de ser processado pelo uso de uma palavra mais contundente.

Bemdito // As universidades são espaços historicamente vulneráveis a tentativas de silenciamento. Por outro lado, o Brasil tem testemunhado um número cada vez mais expressivo de acadêmicos que se dedicam à tarefa de se comunicar em veículos de comunicação de massa. A academia tem compreendido melhor seu papel na qualificação do debate público?

Hübner // Não sei dizer se há uma participação maior hoje em artigos de opinião na imprensa. Claro que a profissão acadêmica nas universidades públicas se expandiu e se profissionalizou mais nos últimos 20 anos, talvez isso explique algo. E acadêmicos se fazem presentes também em redes sociais, o que é novo.

Bemdito //  Como definir Augusto Aras em três palavras?

Hübner // Autoridade pública criticável (como outra qualquer).

Bemdito // E o Supremo Tribunal Federal, tem salvação?

Hübner // Se não tiver, nossa democracia não tem salvação. Mas precisa estar à altura de sua missão constitucional.

Bemdito //  Escrever te dá medo?

Hübner // Nunca deu, começa a dar.

Bemdito // Você pode deixar um conselho para ajudar o perseguido a atravessar o inquérito?

Hübner // Aconselharia a se aproximar de grupos e organizações de defesa da liberdade, e, claro, receber boa orientação jurídica antes de qualquer gesto. É importante construir formas coletivas de prevenir e reagir a isso, pois casos individuais de intimidação não são só casos individuais. São formas de silenciamento que miram muito além daquela pessoa, querem despertar medo e calar os outros.

Juliana Diniz

Editora executiva do Bemdito. É professora do curso de Direito da UFC e Doutora em Direito pela USP, além de escritora. Publicou, entre outras obras, o romance Memória dos Ossos.